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Aids não tirou alegria de Cazuza, que juntava os amigos até no hospital

Giselle de Almeida*

Do UOL, no Rio

12/06/2015 07h15

As primeiras febres surgiram ainda em 1985, no ano em que dava início à nova fase de sua carreira. Mas a falta de precisão nos testes da época não permitiu um diagnóstico precoce, embora os mais próximos afirmem que, sim, Cazuza já sabia estar soropositivo. A confirmação definitiva só veio dois anos depois. Os sintomas se agravaram, e foi preciso recorrer a um tratamento mais adequado nos Estados Unidos.

“Um dia ele me disse: ‘Eu falava tão mal do dinheiro do meu pai, mas é graças a esse dinheiro que eu estou vivo’. Precisava ter poder de fogo pra fazer o que o João [Araújo, pai de Cazuza] fazia. Não era qualquer um que podia, era muito caro. Ele foi pra Boston de avião fretado, com UTI montada, tudo como tinha que ser”, lembra Ney Matogrosso, que começou uma relação com o cantor antes mesmo dele ser famoso.

“Quando começaram a falar sobre Aids -logo no começo da epidemia- eu comentei que não dava mais para transar sem camisinha”, afirmou Ney em depoimento ao livro “O Tempo Não Para - Viva Cazuza”, de Lucinha Araújo, mãe de Cazuza. “Pouco depois ele me contou uma coisa que nunca esqueci. Disse que um dia estava em frente do espelho, olhou-se bem, e falou: ‘Eu vou morrer dessa doença’.”

Mais magro e de aparência fragilizada, o cantor não escapou das especulações sobre seu estado de saúde até decidir assumir publicamente, em fevereiro de 1989, numa entrevista ao jornalista Zeca Camargo, da “Folha de S.Paulo”, que havia contraído o HIV. “Ele disse: ‘Estou com a maldita, é Aids’. A gente queria proibir, hoje ainda tem preconceito, imagina naquela época. Mas ele falou: ‘Uma pessoa que canta ‘Brasil, mostra a sua cara’ não pode esconder a sua’. Aí a gente disse: ‘Estamos com você’. E ele nunca foi tão amado”, afirma Lucinha Araújo.

A atitude corajosa, e inédita até então entre artistas brasileiros, não o livrou de reportagens oportunistas, como a capa da revista “Veja” de abril do mesmo ano, que não só lhe dava uma sentença de morte como questionava a relevância de sua obra. Alessandra Porro, filha do jornalista Alessandro Porro, morto em 2003, aos 73 anos de idade, um dos autores da reportagem, ao lado de Angela Abreu, contou ao UOL que seu pai também ficou chateado com a repercussão negativa alcançada. “As pessoas acharam que foi ele que escolheu a foto, fez o título…”

No livro "Cazuza, Só as mães são Felizes", também de autoria de Lucinha Araújo, ela conta a reação de Cazuza ao ver a capa da revista. “Tive vontade de vomitar”, disse o cantor, triste por ter recebido Angela mesmo com 39 graus de febre. Depois Cazuza começou a chorar, passou mal e precisou ser internado, com queda na pressão arterial. 

Cazuza no Prêmio Sharp - Antônio Nery/Agência Globo - Antônio Nery/Agência Globo
"Eu estou vivo por causa do meu trabalho", discursou Cazuza ao ganhar o Prêmio Sharp, em 1989
Imagem: Antônio Nery/Agência Globo
Mas deixar-se abater não era uma opção para Cazuza, que, dias depois, subiu ao palco uma vez mais, de cadeira de rodas, para receber o Prêmio Sharp de melhor música (“Brasil”) e melhor disco de rock (“Ideologia”) no Copacabana Palace. “Estou vivo por causa do meu trabalho”, declarou ele na ocasião.

Quem acompanhou de perto esse período garante que a doença não o transformou. “Fui visitá-lo quando ele voltou de uma internação e esperava ver um Cazuza diferente. Mas vi que não, era o mesmo cara. Só estava debilitado, a cabeça estava igual”, diz Dé Palmeira. 

Se o mergulho no trabalho foi essencial, o humor certamente ajudou a tornar seus dias mais leves. “Ele ficava meio transtornado com o AZT [primeiro medicamento aprovado para o tratamento da Aids]. Uma vez, fui visitá-lo, e ele queria que eu tomasse, pra ficar na mesma onda que ele. Eu falei: ‘Cazuza, não vou tomar isso não. Não sei o que esse remédio faz!’ (risos). Ele tinha um humor negro, debochava da situação”, conta Ney.

Nem as limitações físicas o impediam de querer se divertir. “Ele era um cara muito especial, juntava as pessoas, fazia bagunça até no hospital, bem fraco. Lembro que ele foi ao meu casamento, em dezembro de 88, depois de ter feito uma transfusão de sangue. Foi, cantou, subiu no palco, dançou. Dentro das possibilidades dele, ele queria viver a vida”, afirma George Israel.

A irreverência, ele manteve até seus últimos momentos, no dia 7 de julho de 1990. O que deixava sua mãe um tanto apreensiva. “Na véspera dele morrer, ele virou pra mim e disse: ‘Mamãe, estou morrendo’. Eu respondi: ‘Meu filho, você prometeu que não ia dizer isso. A gente não ia falar em morte’. E ele: ‘De fome, mamãe. O que é que tem pra rangar?’”, lembra Lucinha Araújo.

Há 25 anos à frente da Sociedade Viva Cazuza, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, que dá suporte a crianças soropositivas com o dinheiro de doações e dos direitos autorais da obra do filho, Lucinha também mantém a memória do filho bem viva: fotos, objetos pessoais, discos e prêmios . “Cazuza foi uma pessoa que passou pouco tempo pela vida, só 32 anos, mas marcou presença. Tem gente que vive cem, cento e poucos anos e passa pela vida sem viver. Ele passou pela vida, viveu, deixou a marca dele e espero que por muitos anos ainda”, afirma Lucinha.

* Com colaboração de Jones Rossi