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Filme sobre selo que revelou Raimundos vale por causos hilários do rock 90

Alexandre Matias

Do UOL, em São Paulo

25/06/2015 19h05

Quem conhece o jornalista e produtor Carlos Eduardo Miranda sabe que ele adora pregar peças nos outros. Inventa altas lorotas, exagera situações e finge-se de desentendido com desenvoltura, só para ver a reação das pessoas. A melhor lorota inventada (até hoje) por Miranda é alvo do quarto documentário do jornalista jundiaiense Ricardo Alexandre, "Sem Dentes: Banguela Records e a Turma de 1994", que será lançado no festival In Edit, em São Paulo, na próxima semana (com sessões nos dias 4, no Cine Olido, 5, na Cinemateca, e 10, no CCSP). O filme conta a transformação no cenário musical brasileiro que aconteceu entre as duas últimas décadas do século passado, quando a geração do rock dos anos 80 passou a ser rotulada de jurássica pela crítica especializada, enquanto uma nova cena procurava brechas para acontecer.

Tudo isso se afunilou para a invenção do selo Banguela Records, um filhote da gravadora Warner inventado por Miranda quando ele ainda era jornalista da revista "Bizz". Em uma entrevista com os Titãs, ele mostrou para os integrantes da banda fitas cassete de nomes completamente desconhecidos na época como Pato Fu, Little Quail & the Mad Birds, Chico Science & Nação Zumbi, Graforreia Xilarmônica, Raimundos, Maskavo Roots, Skank, Mundo Livre S/A e Planet Hemp. Os Titãs ficaram impressionados com aquela nova geração, e Miranda os convenceu para que lançassem em um novo selo. Uma história que culminou com a criação de um selo da multinacional Warner com o aval dos Titãs, sem que nem o grupo nem a gravadora soubessem de fato o que estava acontecendo. Um causo contado às gargalhadas pelo próprio Miranda, pelo produtor Vagner Garcia e pelo jornalista André Forastieri.

"O Banguela é um símbolo daquela geração", explica o diretor do documentário. "Pode não ter sido o maior, nem o primeiro, nem o melhor, mas é de longe o mais simbólico, e foi isso o que me atraiu. Por meio dele, a gente consegue falar da cultura dos selos, que surgiu de dentro da utopia alternativa. Consegue falar de sucesso popular, de sucesso de crítica. Consegue falar da importância da 'Bizz', do contraste com a geração dos anos 80."

Ao elencar essas diferentes características do início dos anos 80, Ricardo traça a conexão entre seu primeiro e terceiro livros. "Dias de Luta", de 2002, contava a história da geração 80 do rock brasileiro, que criou os alicerces do showbusiness do país. Já "Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar", lançado há dois anos, é uma história da transição do pop brasileiro dos anos 90 para o século 21 contado de um viés assumidamente autobiográfico.

Sobrevida superficial do rock

"Sem Dentes" mira em 1994 como o annus mirabilis de toda a geração dos anos 90, mas o único consenso sobre a importância daquele ano para esta geração é a existência do Banguela. Ao mesmo tempo, 1994 é o ano em que o livro "Cheguei..." começa, enquanto "Sem Dentes" tem início quando "Dias de Luta" chega ao fim. Dessa forma, o documentário funciona como uma ponte entre duas gerações do rock nacional que, ao optar por um gênero, prefere ignorar o contexto para além dele.

Fala-se muito sobre a chegada da MTV no Brasil e quase nada sobre a ascensão do sertanejo, da axé music ou do pagode. Há muita referência a Seattle e a Kurt Cobain e pouca sobre a influência do Plano Real no consumo brasileiro. A "Bizz" parece ser mais importante do que a chegada do CD. Ricardo sabe disso: "Acho que ainda há muitas outras histórias a serem contadas sobre essa mesma geração."

Esse viés pró-rock também busca dar uma sobrevida artificial ao gênero, ao colocar uma geração atual de roqueiros do país para reviver "A Tempestade", o primeiro single do grupo brasiliense Maskavo Roots, ao final do filme. A música, que marca o fim de 1994 e o começo da decadência do Banguela, dá a "Sem Dentes" um final bem piegas e pouco representativo do extenso cenário pop brasileiro atual. Esse, sim, talvez o grande legado do selo criado por Miranda.

Mas se falta esse contexto, sobram histórias contadas sempre com um misto de nostalgia e perplexidade, além de nenhum arrependimento e gargalhadas de tirar o fôlego. Há casos hilários sobre a gravação do primeiro disco do Mundo Livre S/A, "Samba Esquema Noise"; sobre como os Raimundos brigaram com o selo ou por que a Nação Zumbi ou o Planet Hemp não foram parar no Banguela. Integrantes de quase todas as bandas que faziam parte da cena e diversos personagens de bastidores --empresários, produtores, engenheiros, jornalistas, músicos, dois Titãs (Nando Reis e Charles Gavin)-- ajudam a tirar a pecha de aventura deliciosamente irresponsável para dar ao selo a característica de força-motriz de um movimento cultural, assim como a Record funcionou para a geração da MPB do fim dos anos 60 e o Rock in Rio funcionou para o rock brasileiro dos anos 80.

Talvez por esse clima leve é que as duas horas de duração do documentário não pesem tanto, mesmo com vários depoimentos sobrando, em especial os do Nando Reis e alguns de Dado Villa-Lobos, além do papel de quase narrador de André Forastieri. E Ricardo ainda acha que ficou gente de fora. "Dos que tentamos entrevistar, lamento que os Titãs 'sobreviventes' não tenham falado conosco. O Rodolfo Abrantes [ex-vocalista dos Raimundos] foi convidado, inicialmente disse que toparia, mas depois nós é que desencanamos, começamos a gostar do fato de ele não estar no filme. Não falamos com o Brian Butler, por exemplo, nem com a Renata Maia Canova, nem com a Tati Ivanovici [ex-VJ da MTV, que morreu no início do mês], que eram pessoas das quais me lembro muito bem, muito importantes na memória afetiva que eu tenho daquele ambiente. O fato de a Tati haver morrido pouco antes do lançamento do filme deu um sabor ainda mais amargo à ausência dela."

Mesmo sobrando conversas e faltando entrevistados, o documentário tem o Miranda contando suas próprias histórias --e só isso já vale o preço do ingresso. O produtor tem a capacidade de prender a atenção e fazer rir até quando fala sobre coisas aparentemente bobas e ridículas, como por exemplo quando ele conta sobre um dia em que acordou após ter sonhado que estava voando entre as nuvens. Parece o papo mais furado do mundo, mas quando você menos percebe está caindo direitinho na conversa do herdeiro espiritual de Carlos Imperial, de quem ele dizia nos anos 80 que era filho.