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Autobiografia de Marky é desabafo sobre difícil convivência com os Ramones

Marco de Castro

Do UOL, em São Paulo

26/06/2015 07h00

Os Ramones tinham suas particularidades. O guitarrista Johnny era autoritário e defensor de políticos de direita; o vocalista Joey tinha TOC (transtorno obsessivo-compulsivo); o baixista Dee Dee estava sempre sob efeito de drogas; e todos eles viviam em conflito entre si. Recentemente lançada, "Minha Vida como um Ramone - Punk Rock Blitzkrieg" (editora Planeta), do baterista Marky Ramone em parceria com o escritor Rich Herschlag, volta a abordar as loucuras e brigas internas do grupo seminal do punk rock, mas de uma forma mais crua, direta e detalhada.

Entre as quase 450 páginas do livro, Marky --que não era o baterista original, mas foi quem ficou mais tempo na função-- lembra, por exemplo, que Johnny chamava negros de "macacos" e latinos de "cucarachos", além de ser totalmente contra qualquer benefício social para pobres ou imigrantes.

Já Joey, durante as turnês, sempre ficava hospedado em um andar diferente do hotel, pois tinha a mania de abrir e fechar a porta do quarto para atravessá-la inúmeras vezes, sintoma de seu TOC que irritava os colegas. Dee Dee, por sua vez, é retratado como um gênio completamente maluco, mentiroso e alucinado, que chegou a ameaçar Marky com um canivete em uma ocasião, porque ficou bravo com uma brincadeira boba.

Vida de rockstar e alcoolismo

Marky - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Minha Vida como um Ramone", do baterista Marky Ramone
Imagem: Divulgação

O próprio autorretrato de Marky no livro não é muito bonito. O músico vai fundo no seu problema com alcoolismo, que fez com que fosse expulso da banda em 1983. Na ocasião, quando o álbum "Subterranean Jungle" estava sendo gravado, ele deixava uma garrafa de vodca escondida na lixeira do banheiro do estúdio para dar uns goles nos intervalos das sessões. Acabou sendo dedurado pelo colega Dee Dee, que achou o "tesouro".

Outro trecho menciona que, quando não estava em turnê com a banda, Marky começava a beber assim que acordava e, por volta do meio-dia, costumava "alimentar os animais". O que significava jogar notas de dólares pela janela de seu apartamento para ver as pessoas se agredindo na rua ao tentar pegá-las.

O baterista fala também sobre sua vida anterior à entrada nos Ramones, quando ainda era conhecido como Marc Bell. Apesar de o livro se chamar "Minha Vida como um Ramone", as cerca de 150 primeiras páginas retratam esse período, contando sobre a adolescência, a descoberta do rock and roll, os problemas na escola --onde foi alvo de abusos que o traumatizaram-- e suas primeiras bandas, entre elas as clássicas Dust (que fundou quando tinha apenas 18 anos) e Richard Hell and the Voidoids, outro grupo seminal do punk nova-iorquino.

Mas o livro não mostra só o lado ruim de fazer parte dos Ramones. Marky deixa claro que amava tocar bateria na banda e narra diversas histórias engraçadas e curiosas que ocorreram durante as turnês ou nos estúdios.

Para quem é fã, vale muito a pena saber que Dee Dee Ramone compôs "Pet Sematary" em poucos minutos, no porão de Stephen King, após dar uma rápida folheada no livro "O Cemitério" --que deu origem ao filme "Cemitério Maldito". Ou que o lendário produtor Phil Spector deixou armas em cima da mesa, durante a gravação das guitarras do álbum "End of the Century", para intimidar Johnny, que estava estava sendo obrigado a repetir o mesmo acorde centenas de vezes. Ou ainda que, no teste para Marky entrar na banda, o baterista original, Tommy Ramone, sentou-se em uma bateria atrás da dele para ajudá-lo.

Alguns leitores, no entanto, podem sentir falta de menções ao baixista C.J. Ramone, que substituiu Dee Dee na fase final da banda. O baixista é citado, mas muito pouco. Além disso, a narração detalhada, que marca a maior parte da obra, já não é tão profunda no final, quando, em poucos capítulos, Marky resume sua volta à banda após se livrar do alcoolismo, os últimos discos e shows, a introdução do grupo ao Rock and Roll Hall of Fame e as mortes de Joey, Johnny e Dee Dee.    

Abaixo, leia parágrafos do livro que resumem as personalidades dos Ramones e alguns fatos importantes na história da banda:

Johnny Ramone

Johnny - Kathy Willens/AP - Kathy Willens/AP
Imagem: Kathy Willens/AP

"Nossa viagem pelo coração dos Estados Unidos [durante a turnê do disco 'Road ro Ruin'] estava cheia de racismo, mas não da população local. Era por causa de John. Nós víamos negros, porto-riquenhos e asiáticos. Johnny via 'macacos', 'cucarachos' e 'chineses de merda'. Em algum lugar entre Columbus e Cincinnati, aprendemos que 'macacos' eram preguiçosos demais até para apagar um incêndio em seu próprio quarto. Em algum lugar entre Madison e DeKalb, descobrimos que os 'cucarachos' eram loucos demais por baratas para matá-las. Entre Kansas City e Springfield, ouvimos que todo acidente entre Kansas City e Springfield era causado por um chinês usando uma licença de dirigir falsa. John era o Archie Bunker [personagem reacionário do seriado 'Tudo em Família'] do rock."

Joey Ramone

Joey - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"As manhãs [nas turnês] eram relativamente normais. Todo mundo acordava a tempo do check-out, descia para tomar o café da manhã e se encontrava na recepção. Se Joey não aparecesse a tempo, a gente mandava [o empresário de turnês] Monte ir buscá-lo no quarto. Joey não tinha só dificuldade de sair do quarto [por causa do TOC], ele tinha dificuldade de sair do banho. Para começo de conversa, não era fácil para ele entrar no banho. Com seus quase dois metros de altura, os chuveiros eram baixos demais para Joey, então era preciso se encolher para lavar o cabelo e tomar cuidado para não bater a cabeça no encanamento. Sair também não era muito mais fácil. E depois vinha a torturante repetição de novo: entrar e sair mais uma dúzia de vezes. Às vezes, Monte fazia Joey não tomar banho só para evitar provocar a compulsão e repetir o processo de tomar banho mais umas tantas vezes."

Dee Dee Ramone

dee dee - Jenny Lens/Dee Dee Ramone LLC/Reprodção - Jenny Lens/Dee Dee Ramone LLC/Reprodção
Imagem: Jenny Lens/Dee Dee Ramone LLC/Reprodção

"É preciso ser louco para se envolver com suas mulheres psicóticas ao mesmo tempo. Mais ou menos um ano antes [de Marky entrar nos Ramones], ele estava morando num apartamento com Connie, uma mulher violenta que o perseguia, prostituta e viciada em drogas. Dee Dee também estava tendo um caso com Nancy Spungen, a namorada esquizofrênica do baixista dos Sex Pistols, Sid Vicious. Quando Connie chegou em casa e encontrou Dee Dee na cama com Nancy, quebrou uma garrafa de cerveja vazia e cravou o vidro quebrado na bunda de Dee Dee."

Tommy Ramone

Tommy - Reprodução/Twitter e Stephen Lovekin - Reprodução/Twitter e Stephen Lovekin
Imagem: Reprodução/Twitter e Stephen Lovekin

"Um dia, depois do ensaio,  descobri um pouco por que Tommy apertou o botão de ejetar. No começo, ele era o empresário e, nesse sentido, a figura de autoridade. Quando uma verdadeira equipe de empresários foi trazida, Tommy foi reduzido apenas a membro da banda, e os outros Ramones pareceram ter esfregado sal na ferida. Tommy não era uma figura impositiva, e eles o provocavam –talvez sem maldade, mas não era o que parecia para ele. Além disso, havia uma boa quantidade de discussão entre os outros membros da banda, e o que parecia engraçado no começo fica chato quando você está na estrada por semanas a fio."

C.J. Ramone

CJ - Reprodução/Site do músico - Reprodução/Site do músico
Imagem: Reprodução/Site do músico

"[Nos testes para escolher o substituto de Dee Dee] Mais alguns baixistas vieram e foram, mas então o rosto [de Johnny] se acendeu. Um sujeito de cabelo comprido de Long Island chamado Chris tocou uma versão razoável de 'Sedaded', mas parecia que Johnny Ramone tinha visto um jovem Jack Bruce [lendário baixista do Cream] John foi falar com Chris e confirmou se o telefone da casa dele estava certo. O garoto parecia ter acabado de falar com Deus."

Primeiro show de Marky com os Ramones, em Poughkeepsie (EUA) - 1978

Ramones - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

"Foi ‘Hey Ho, Let´s Go!’ desde a primeira música. A casa estava lotada a ponto de eu procurar as saídas de emergência só por precaução. Os garotos estavam pulando e gritando. Nosso som estava acelerado, alto e pesado, e o set começou a pegar fogo. Não houve nenhum erro na primeira metade do show, e eu sabia que não haveria nenhum pelo resto do show. Quando havia algum sinal mínimo de que a batida ia enfraquecer ou de que alguma coisa ia se perder, eu olhava para John, ou ele olhava para mim. Pelo contato visual, eu sabia o que ele estava fazendo, e ele sabia o que eu estava fazendo. Não havia espaço para erros. Ninguém estava no piloto automático, mas era o que parecia."

Quando Marky foi expulso da banda, em 1983
Eu estava aliviado. E desapontado. E com raiva. Quando a primavera de 1983 começou e, pela primeira vez em muito tempo, eu não estava em turnê com os Ramones, havia muito estresse com o qual eu não precisava lidar mais no dia a dia. John não suportava Joey. Joey não suportava John. Joey não suportava Dee Dee. Dee Dee não suportava John. John meio que tolerava Dee Dee. E a solução foi me expulsar. Eu!

Após Marky voltar à banda, seu primeiro show no Brasil, em São Paulo 

 

Ramones2 - Cláudia Guimarães/Folhapress - Cláudia Guimarães/Folhapress
Imagem: Cláudia Guimarães/Folhapress

"Os gritos de ‘Hey Ho, Let’s Go!’ eram ainda mais altos do que a banda estava acostumada. Eles começaram muito antes do show e continuaram muito tempo depois do segundo e último bis. Os fãs falavam português, mas quando se tratava de cantar a letra de ‘Sedated’, ‘Sheena’ e ‘KKK’, o inglês deles era ótimo.  Não cantavam junto só nos clássicos. Eles sabiam músicas como ‘I Believe in  Miracles’ e ‘Pet Sematary’."

Último show dos Ramones, em Los Angeles, em 1996

"Nos bastidores, não houve despedidas nem tapinhas nas costas. Todo mundo fez o que tinha que fazer no camarim. Havia coisas demais a dizer e nenhum motivo para tentar dizê-las. Achei que terminar com um belo set competente era bem Ramones. Tocar para uma plateia de tamanho médio era bem Ramones. Fazer o que a gente amava entre amigos sem apelar para a cafonice ou afetação era bem Ramones." 

"Minha Vida como um Ramone - Punk Rock Blitzkrieg"
Marky Ramone com Rich Herschlag
Editora: Planeta
Páginas: 448
Preço: R$ 43,90