Com carta, Marina Person convenceu The Cure a liberar música "proibida"
Marina Person era daquelas adolescentes fanáticas por rock que não só colecionava os vinis das bandas favoritas, como também os livros relacionados a elas. Foi por causa de "Killing an Arab", primeiro single do The Cure, que ela quis ler a obra que inspirou a faixa, "O Estrangeiro", de Albert Camus.
Estreando na direção de um longa de ficção, Marina queria que essa história fizesse parte de "Califórnia", filme que chega aos cinemas nesta quinta (3). Só não seria fácil convencer o dono da música, Robert Smith, a liberá-la, já que nada deu a ele tanta dor de cabeça. Em quase 40 anos, a faixa foi diversas vezes usada com propósitos xenofóbicos, levando o músico a proibir sistematicamente seu uso.
A cineasta teve que convencer Smith de que a música não seria usada apenas para ilustrar uma cena, mas que faria parte da narrativa. Em "Califórnia", Estela (Clara Gallo) é uma adolescente que tem que lidar com os dilemas da sua idade e com a chegada de um tio com HIV. Em meio à turbulência, ela conhece JM (Caio Horowicz), um jovem gótico que primeiro lhe empresta o livro "O Estrangeiro" e depois lhe apresenta a canção.
"Foi uma luta para fazer o cara [Robert Smith] entender. Em princípio, ele não queria que eu usasse porque não gosta de divulgar essa música. E em geral, você não consegue falar com essas pessoas. Vem um 'não' e você não entende. Pedi o e-mail dele para a gravadora e não me deram, mas a pessoa me garantiu que se eu fizesse uma carta, ela chegaria até ele. E foi o que eu fiz", conta a cineasta. O músico britânico finalmente entendeu e, segundo Marina, "foi muito legal, muito aberto".
Marina diz ter suado para compor a trilha inteira do filme, com sete músicas brasileiras e oito estrangeiras. Além de The Cure, ela selecionou trabalhos de David Bowie, Echo & the Bunnymen, Joy Division, Titãs, Metrô e outros.
"Cada música era de fato muito importante. A música me inspirou muito a fazer esse filme. Sempre gostei de música e de cinema, a minha vida inteira. Como se passa nos anos 1980 e eu não tinha milhões e milhões de dólares para fazer reconstituição de ambiente e rua, a música é uma maneira de você levar o ambiente para aquela época", explica.
A polêmica de "Killing an Arab"
De acordo com a revista britânica "Q", um grupo racista, apoiador do partido britânico de ultra-direita National Front, foi expulso de um show do The Cure em Londres, em 1979, depois de dizer que a música era seu hino. Em 1986, quando foi lançada a primeira compilação dos singles da banda, "Standing on the Beach", um grupo de atletas americanos de ultra-direita passou a disseminar a música, também com intenções xenofóbicas, nas rádios de faculdades, incluindo Princeton e a Universidade de Michigan.
Após denúncias do Comitê Árabe-Americano Anti-Discriminação (ADC), o The Cure solicitou que as estações de rádio parassem de reproduzir "Killing an Arab" e outras cópias do álbum foram produzidas com adesivos que declaravam: "A canção 'Killing an Arab' não tem absolutamente nenhuma conotação racista. É uma canção que descreve a existência de todos os preconceitos e a consequente violência. The Cure condena seu uso na promoção de sentimentos anti-árabes".
As críticas à música voltaram no início dos anos 1990, durante a Guerra do Golfo e nos ataques de 11 de setembro de 2001. A banda só foi ressuscitar a faixa em 2005, ao tocá-la em uma série de shows pela Europa. A letra, no entanto, foi modificada para "kissing an Arab" (beijando um árabe), "killing another" (matando outro), "killing an Englishman" (matando um inglês) e até "killing Kevin Keegan" (matando Kevin Keegan), um grande jogador inglês da época, ídolo de Smith e que, a propósito, está vivo.
Ao falar da polêmica, Smith uma vez brincou que a música era dedicada aos árabes ricos que iam às festas de Crawley (subúrbio de Londres) para pegar garotas. Mas, em geral, falava sério. "Não é um chamado para matar árabes. Apenas um personagem do livro que matou um árabe, mas podia ter sido um escandinavo ou inglês. O fato de ele ter assassinado um árabe não teve nada a ver com isso".
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