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Nas ruas e no Grammy, Kendrick Lamar fez o disco do ano

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

08/12/2015 17h36

As 11 indicações ao Grammy 2016 dão a dica: este foi o ano de Kendrick Lamar. O rapper californiano de 28 anos conquistou o prestígio da crítica com seu terceiro disco, "To Pimp a Butterfly", presente no topo de oito em cada dez listas de melhores lançamentos de 2015. Mas como qualquer disco de rap que se preze —e este é um dos grandes—, seu maior feito vem das ruas.

Como um mantra, o refrão da música "Alright" ("Nós vamos ficar bem", em tradução livre) foi entoado durante protesto do Black Lives Matter, contra a brutalidade policial sofrida por um estudante na Universidade Estadual de Cleveland, em Ohio. O clamor foi novamente ouvido em Washington, na comemoração do 20° aniversário da Marcha de Mil Homens, marco do combate à desigualdade racial nos Estados Unidos.

Entre o panteão da indústria musical e as vozes das ruas, Kendrick Lamar atingiu um raro equilíbrio entre popularidade e consciência, traduzido nas imagens do impactante clipe de "Alright". No vídeo, ele voa pelas ruas de Los Angeles, sorridente, inspirado e inspirando seus "homies" [manos], mas termina com o destino comum a muitos dos seus: alvejado pela polícia. Não há sucesso que mude sua condição frente a uma sociedade racista.

Kendrick surgiu com suas mixtapes aos 16 anos. As elogiadas letras chamaram a atenção de outros rappers, incluindo o lendário Dr. Dre, e ajudaram a revitalizar a cena na Costa Oeste, berço do gangsta. O segundo disco, "good kid, m.A.A.d city", trouxe sucesso para além dos Estados Unidos e emplacou o single "Bitch Don't Kill My Vibe" nas paradas e como gíria -- é aquela frase que você manda quando alguém quer cortar seu barato.

A transformação de Kendrick no rapper queridinho do momento --e como convidado em trabalhos distintos ao seu, como nas parcerias com Imagine Dragons e Taylor Swift, com quem disputa a categoria de álbum do ano no Grammy-- o deixou ainda maior, mas acabou com a sua "vibe".

O cantor teve depressão e escancarou sua condição no poema em que repete ao longo do álbum, dedicado à memória do rapper Tupac Shakur: "Eu me lembro que você estava em conflito com o mau uso da sua influência / Às vezes, eu fiz o mesmo / Abusando meu poder, cheio de ressentimento / O ressentimento que se transformou em uma depressão profunda / Encontrei-me gritando no quarto do hotel / Eu não quero me autodestruir".

Entre a rua e a fama

"To Pimp a Butterfly" é uma delirante viagem de ritmos e ideias. Após o sucesso do disco anterior, legítima cria do groove da Costa Oeste norte-americana, Kendrick solta seu fluxo inebriante de pensamentos sob bases que vão do jazz ao p-funk, estilo criado pelo Parliament-Funkadelic. A complexidade rítmica faz a cama para o rapper analisar o momento que a fama lhe espreitou atrás da porta.

Na faixa de abertura, "Wesley's Theory", com participação de George Clinton (Parliament-Funkadelic), ele canta sobre como os artistas negros são usados pela indústria e instigados à ostentação. O Wesley do título é o ator Wesley Snipes, preso em 2010 por sonegação de impostos. "Ninguém ensina pobres homens negros como gerir o dinheiro ou fama. Por isso, quando elas alcançam o sucesso, o poder pode levá-los para baixo", disse o cantor, na época do lançamento.

A crise de Kendrick o leva a um passeio profundo sobre a condição dos negros na sociedade moderna. Em "Institutionalized", ele segue: "Se eu fosse o presidente, eu pagaria o aluguel da minha mãe / Libertaria meus manos e depois / Colocaria as portas do meu Chevy à prova de balas / Deitaria na Casa Branca e ficaria louco, senhor / Quem nunca pensou nisso? / Mestre, tire as correntes de mim".

Os estereótipos dos afro-americanos em relação ao sexo, às mulheres, à violência e ao abuso são dissecados na dançante "King Kunta" ou através das paredes metafóricas da sensual "These Walls".

Descomunal em seus delírios e confissões, ele explora o ressentimento com a própria fama --ou do falso poder-- em "How Much a Dollar Cost", ao ser confrontado por um pedinte na rua, ou na pesada "The Blacker the Berry": "Eu sou o maior hipócrita de 2015 / Quando eu terminar isto que você está escutando tenho certeza que você vai concordar / Essa trama é maior do que eu, é o ódio de gerações, é genocídio, é imundo, pouca justificativa / Eu sou africano-americano, sou africano".

Neste fluxo de consciência, "To Pimp a Butterfly" traz similaridades a outro lançamento, o brasileiro " Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa", do rapper Emicida. Assim como o paulistano, Kendrick foi completamente influenciado por uma viagem à África do Sul --do empoderamento de "i" à reflexão final em "Mortal Man", onde diz querer retransmitir a mensagem de igualdade pregada por Nelson Mandela.

"Quando você tem 30 anos é como se arrancassem o coração e a alma do homem, de um homem negro, neste país", disse Tupac em 1994. As palavras do rapper morto em 1996 ressurgem na última música, com quem Kendrick dialoga. É a conversa possível entre duas gerações conscientes da indústria e da rua.