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Entre o Islã e o metal, muçulmana quer reconhecimento como guitarrista

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

21/01/2016 10h45

Os olhos verdes, levemente delineados, observam atentamente os dedos hábeis que deslizam pela guitarra preta de bolinhas rosa. E isto é tudo que você verá de Gisele Marie Rocha. Já no amplificador, boa parte do que essa guitarrista camufla por baixo de um longo tecido preto é traduzido no barulhento solo de "Symptom of the Universe", clássico do Black Sabbath, que ela toca na sala de sua casa, em São Paulo.

"É muito fácil as pessoas olharem para uma mulher e verem tudo, menos o que ela está querendo dizer, menos o seu talento", ela diz, entre uma e outra demonstração empunhando sua Polka, a guitarra.

Aos 42 anos, Gisele mantém o treino diário com o instrumento enquanto ensaia com sua nova banda de thrash metal, com quem pretende cair na estrada ainda este ano. É assim desde o início dos anos 1980, quando foi arrebatada pela primeira vez por Randy Rhoads, guitarrista que acompanhava Ozzy Osbourne e que morreu em 1982.

O impacto foi tanto que Polka foi construída para parecer com o modelo Jackson Flying V --preta com bolinhas brancas-- usado pelo ídolo. "No primeiro segundo que eu o ouvi, minha vida nunca mais foi a mesma. Ele me chocou. Desde então nunca mais parei de tocar guitarra". Nem mesmo quando o Islã tocou sua vida.

Ser mulher

Consumidora voraz de literatura, a musicista navegava na internet em 2009 quando se deparou com o Alcorão, livro sagrado do Islã. Católica não praticante, ela foi levada pela escrita em forma de poema, pela simplicidade dos ensinamentos e pelos rituais livres de secretismos. "Dentro da nossa fé, nós dizemos que o Islã não procura as pessoas. As pessoas que são encaminhadas ao Islã", explica sobre sua iniciação autônoma na religião. Impacto semelhante só aconteceu quando abandonou o piano clássico, que praticava desde a infância, para se entregar ao "deus metal".

Gisele talvez seja a única guitarrista de thrash metal a usar niquab, a vestimenta com véu que cobre o rosto e só revela os olhos, obrigatório na presença de homens que não são da família. Por baixo do pano, ela é uma mulher, com muitas outras, em busca de reconhecimento profissional. "Não é fácil uma mulher tocar. Nunca. Não é fácil ser mulher, começa daí. A luta para que eu seja valorizada como instrumentista, acima de ser muçulmana e usar niquab, é uma luta que vou ter que travar minha vida toda até o fim".

Após ter saído da banda Spectrus no ano passado, ela se prepara para montar um novo grupo, ainda sem nome e em fase de composição. Entre os temas, questões sociais, ecológicas e até músicas sobre diversão. "A arte não pode ser limitada. Procuramos sempre uma mensagem", ela adianta. Canções típicas do metal, com cenários apocalípticos e mensagens antirreligiosas não é bem a praia. "Não vendemos morte. Esse assunto não nos atrai".

Como uma extensão da força que sua imagem emana, ela busca uma mistura maior no gênero. "Não estranhe se tiver cuíca e alaúde. Sou contra as coisas que limitam as possibilidades humanas. A mistura é fator de criação do novo. É sempre saudável".

Vida sem haram

A vestimenta das mulheres muçulmanas é alvo de constante polêmica em outros países. O tribunal europeu até hoje insiste em tentar proibir o uso do niqab e da burca (vestimenta que cobre todo o corpo, inclusive os olhos) em lugares públicos. O Islã afirma que se trata de violação da liberdade religiosa. "É tão opressivo e condenável quanto os muçulmanos que querem obrigar as mulheres a usar niquab de qualquer jeito", Gisele se posiciona.

Mas ela admite: é, também, uma questão de conforto. "Não quero nunca mais usar outro tipo de roupa. Ela não é prática, às vezes eu piso na barra, embora já esteja acostumada. Hoje em dia eu escalo até montanha com ela".

O preconceito com a religião ganha um discurso mais agressivo com as notícias dos ataques dos Estados Islâmicos. Por falta de informação, a opinião pública acaba acreditando que a violência faça parte dos princípios islâmicos. "O objetivo [desses ataques] não é religioso, é sempre econômico. Todos esses grupos são assim, inclusive esse grupo que se autodenomina Estado Islâmico. Eles não são estados, nem islâmicos. Nesse sentido, dentro desse ambiente, o islã é deturpado para justificar os objetivos desses pequenos grupos de poderosos", explica.

No Brasil, onde o Islã é a religião de uma parcela mínima da população brasileira (em torno de 0,02%, segundo o último Censo, divulgado pelo IBGE, em 2012), Gisele conta que nunca sofreu preconceito ou foi impedida de fazer algo por causa da vestimenta. Pelo contrário. "Em geral, o comportamento comigo é sempre positivo. É comum as pessoas se aproximarem querendo conversar, tirar foto. Eu entro no metrô e as crianças vêm mexer comigo. Eu adoro".

Com exceção de uma vez, quando um homem lhe puxou o véu e acabou sendo detido pela polícia, Gisele só sente reprovação de um grupo mais ortodoxo dentro da própria religião. "Muitos muçulmanos vão me ver nos shows, mas sempre têm aquelas cabeças de pedra, os fundamentalistas, que não aceitam, que dizem que a música é 'haram' [pecado]. Não existe fundamento para isso. Eu simplesmente corto [essas pessoas] do meu relacionamento social e acabou. E ai de alguém se reclamar [de sua presença nas mesquitas]. Eu sei os meus direitos", defende. "Não tem força nesse universo que me faça deixar de ser muçulmana e guitarrista".

Se o metal fosse de fato 'haram', o que ela escolheria? "Ia ser complicado para mim. Tenho minha fé no coração. Nenhuma instituição religiosa jamais me faria deixar a guitarra".