Após sucesso na Broadway, Gloria Estefan promete musical no Brasil
Se o consumidor da indústria cultural americana estiver à procura de um antídoto para a polêmica em torno da ausência de indicados não-caucasianas ao Oscar deste ano, basta dar um pulo na Broadway. Nos palcos de Nova York, para ficar apenas nos exemplos mais gritantes, pode-se ver Jennifer Hudson brilhando na versão teatral “A Cor Púrpura”; todo um elenco de atores latinos, asiáticos e negros encarnando os pais da pátria americana em “Hamilton”; e Forrest Whitaker em papel originalmente criado para Al Pacino.
Pois a diversidade étnica e cultural da Broadway versão 2015/16 tem em Gloria Estefan, 58, um de seus símbolos mais visíveis, com o sucesso de público e crítica de “On Your Feet”. O musical conta a história da artista nascida em Havana que incorporou ao pop americano, então dominado pela disco music, a salsa, o mambo e o bolero de inflexões caribenhas, cantando em inglês, inicialmente com a Miami Sound Machine de seu futuro marido Emilio Estefan, 62, e depois em uma carreira solo consagrada por três prêmios Grammy e 100 milhões de discos vendidos mundo afora.
“On Your Feet” —que terá em breve, segundo dona Estefan contou em entrevista exclusiva ao UOL, uma versão em português pensada especialmente para os palcos brasileiros— trata de temas de digestão complicada, como a experiência dos imigrantes não-documentados de origem latino-americana nos EUA e a de cubanos como os Estefan antes, durante e depois da Revolução de 1959. Tudo isso em meio a hits românticos e dançantes como “Conga”, “Rhythm Is Gonna Get You” e “Don’t Wanna Loose You Now” e diálogos engraçadinhos, fruto da mente de Alexander Dinelaris, um dos oscarizados roteiristas de “Birdman”.
Ao UOL Gloria Estefan, que recebeu do presidente Barack Obama no ano passado a Freedom Medal, uma das maiores honrarias concedidas pelo governo americano, trata da política de aproximação com Havana promovida pelo primeiro negro a comandar a Casa Branca, do desprazer que sente ao ver políticos atacando a comunidade hispânica durante o período eleitoral —“nos usam como bodes expiatórios”— e de como ouvia Rita Lee sem parar durante as excursões da Miami Sound Machine pelos EUA na primeira metade dos anos 1980, antes do lançamento, desafiador para as regras de então do mercado, do primeiro disco de grupo de origem latina exclusivamente em inglês, “Eyes of Innocence”, de 1984. Trinta e dois invernos depois, o melhor da conversa com dueña Estefan segue abaixo.
UOL - O grosso do público de “On Your Feet” é de origem latino-americana. Quais as possibilidades de o espetáculo incluir o Brasil em uma eventual turnê internacional?
Gloria Estefan - Quando finalmente dei o sinal verde para “On Your Feet”, um dos pontos centrais era justamente o de levar o espetáculo para o Brasil. Já estamos em negociações e vamos precisar de uma adaptação, claro, porque algumas músicas irão para o português. Já começamos a trabalhar nisso, haverá uma turnê internacional do espetáculo, com certeza, e um “On Your Feet” em português do Brasil. Assim que tiver a data, te aviso em primeira mão.
A senhora já gravou em português e cantou desde Tom Jobim até um dueto com o Só Pra Contrariar. Se sente em casa quando se trata de música brasileira?
Coloquei desde muito cedo a música brasileira em um pedestal. Ouço música brasileira o tempo todo. Cubanos e brasileiros têm as mesmas raízes africanas, mas o que os músicos do Brasil fizeram com as bases rítmicas presentes na América Latina foi, sim, senhores, algo absolutamente singular. Claro, para nós todos, músicos crescendo em Miami na virada dos anos 1960, Tom Jobim e João Gilberto foram fundamentais. Mas sou eclética em minha paixão pela música brasileira, adoro quase tudo, inclusive o pagode de primeira, tenho o maior orgulho de minha parceria com o Só Pra Contrariar. E na época do Miami Sound Machine, Rita Lee não saía de nossa vitrola. Fiz até um cover de “Lança Perfume” que, claro, batizei de “Baila Comigo”, porque adoro aquele disco de 1980, do início ao fim. Olha aí uma ideia para o espetáculo brasileiro.
A senhora disse que “finalmente” deu sinal verde para “On Your Feet”. Levar a sua vida para o palco não era exatamente um projeto seu e de Emilio?
Jamais esteve em nossos planos. A maior parte de nossa vida passamos em turnês mundo afora, concentrados em nossas carreiras pop. A única vez que o teatro bateu em nossas portas foi há vinte e cinco anos, quando nos pediram que fizéssemos uma trilha sonora para um musical centrado no universo latino nos EUA, mas passava longe da biografia, até porque éramos muito jovens. Acabamos não topando, porque teríamos de nos dedicar exclusivamente ao espetáculo por um longo tempo e, bem, éramos jovens e gostávamos era da estrada, né (risos)?
E como “On Your Feet” chegou à Broadway?
Foram dois anos para sair do papel, desde a ideia inicial, que surgiu de uma consulta de um amigo interessado em contar nossa história em um show em Las Vegas, até nossa decisão de topar o projeto, mas na Broadway, onde eu não precisaria estar no palco. Respeito muito o povo dos musicais, ali é preciso ser do teatro, né? E é muito trabalho, gente, só de pensar nos ensaios já me cansa (risos).
Um dos principais destaques de “On Your Feet” é justamente Ana Villafañe, a Gloria Estefan dos palcos...
Encontrá-la foi importantíssimo. Fizemos teste de elenco em Miami, Los Angeles e Nova York, e vimos quase três mil atrizes. Duas semanas antes dos ensaios, todo o elenco estava escolhido, menos a minha personagem. Curiosamente, não foi fácil encontrar uma atriz jovem capaz de cantar pop e música latina com a mesma desenvoltura. Mas aí a Ana surgiu, e ela parecia ser minha filha, falava igualzinho a mim, o mesmo sotaque latino de Miami. Não sabia ainda, mas ela não só havia sido criada no meu bairro como frequentou a mesma escola que eu. Ela não é uma contralto, não cantava exatamente como eu, mas naquele instante vi que tinha de ser a Ana. Vai parecer latinismo, mas foi um encontro de almas.
“On Your Feet” é uma biografia clássica, conta sua vida desde a saída de sua família de Cuba até o estrelato nos EUA, passando pelo acidente que quase a matou. Qual a sensação de ver sua vida passando em três horas, com intervalo (risos), em um palco da Broadway?
Ver a representação das nossas vidas no palco foi surreal. Acho que chorei mais vendo “On Your Feet” do que em toda minha vida anterior (risos). Rio agora, com você, mas foi duro. Agora, não queríamos aquela coisa mais caricata que às vezes se vê no teatro musical. O Emilio é mesmo aquela pessoa piadista, sempre com uma piada pronta. Falei com a mamãe, não vou mentir, vamos mostrar a senhora durona conosco e lá estarão expostos temas difíceis, como a volta do meu pai da guerra do Vietnã, ou quando Emilio me ajuda com a cadeira de rodas depois do acidente durante a turnê em 1990 que virou minha vida do avesso [Estefan fraturou a vértebra depois que o ônibus da turnê se chocou com um caminhão durante uma tempestade de neve na Pensilvânia].
A peça começa em Cuba, com a Revolução e a partida de sua família para o exílio. A senhora sempre foi muito clara em relação a sua oposição ao regime dos Castro. Como vê o processo de aproximação dos EUA com Cuba iniciado na segunda administração Obama?
Serei completamente honesta. Gostaria que o governo cubano tivesse se comprometido de forma mais clara, nas conversas com Washington, em amenizar a mão de ferro que oprime os cubanos. Que se comprometessem de fato com eleições livres e interrompessem a perseguição a organizações interessadas em promover a democracia em Cuba. Mas precisamos ser realistas e, com todos os poréns, foi sim um passo dado para melhorar a vida dos cubanos. Os Castro são homens idosos. Minha esperança é que, quando eles se forem, as novas gerações se abram mais para mudanças reais e necessárias para todos os cubanos.
A senhora tem lembranças de Havana?
Tinha dois anos e meio quando deixei Havana. Jamais me esqueço de quando minha mãe me levou para ver meu pai na cadeia, pouco depois de a Revolução explodir, na virada do ano. Ele era um policial no governo Fulgêncio Batista (ditadura de direita apoiada pelos EUA) e filho de um comandante do Exército, sabia que seria preso. Assim que ele foi solto partimos para o exílio. Mas eu e Emilio voltamos a Cuba em 1979, quando o presidente Jimmy Carter ofereceu a possibilidade de vistos de visita extraordinários para familiares em sua iniciativa conhecida como para "la comunidad", e pude rever meu país de origem. Na época, o irmão de Emilio estava tentando desertar para a Costa Rica e conseguimos levar mantimentos que eles esconderam por dois meses em casa antes de conseguirem finalmente escapar.
Um dos momentos mais impressionantes de “On Your Feet” é a cena em que os jovens Gloria e Emilio confrontam um executivo de uma grande gravadora em Nova York, que tem uma postura racista. Os senhores dizem, desafiadores e proféticos, “olhe bem para a gente, esta é a cara da América”. A plateia reage com gritos e aplausos frenéticos, é como se eles estivessem se vendo no palco...
Sim, porque eles ainda vivem isso hoje, embora sejamos muitos mais representativos nos EUA de agora do que no da virada dos anos 1980. Veja o que está acontecendo na campanha presidencial, com certos candidatos (notadamente os republicanos Donald Trump e Ted Cruz, este último, curiosamente, de origem cubano-americana) atacando a comunidade hispânica, ou, como eu prefiro dizer, filhos de imigrantes mais antigos espezinhando os imigrantes mais recentes. Porque é isso, né? Ou bem você é descendente de indígenas ou você é, também, resultado direto da imigração que formou os EUA. É muito difícil para mim ouvir certas figuras políticas, você pode imaginar quem são, usando os hispânicos como bodes expiatórios para problemas alheios a uma comunidade que engrandece este país.
Foi importante incluir este momento de celebração do imigrante latino no espetáculo?
Ele é parte de nossa história. No nosso caso, a resistência artística minha e de Emílio se traduziu em fazer nossa música em inglês, mesclando o ritmo e temas latinos com o pop anglo-americano. Para nós, aquela era uma síntese da integração que acontecia em nossas escolas, em nossos bairros, era uma representação honesta do momento histórico e de quem éramos, de nossa geração. E não, de fato não aceitamos as regras do mercado naquele momento. Ora bolas, quem eram eles para determinar para que público deveríamos nos apresentar e em que rótulo nos confinar?
Serviço: “On Your Feet” está em cartaz até o fim de novembro no Marquis Tehatre, na rua 46, em Manhattan.
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