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No Samba da Vela, a música só para quando a vela se apaga

Cida é quem faz o famoso caldinho de feijão após o samba  - Bárbara Forte e Fernanda Fadel/BOL - Bárbara Forte e Fernanda Fadel/BOL
Cida é quem faz o famoso caldinho de feijão após o samba
Imagem: Bárbara Forte e Fernanda Fadel/BOL

Bárbara Forte e Fernanda Fadel <br>Do BOL, em São Paulo

17/05/2016 14h00

Um dos ritmos mais brasileiros, o samba completa 100 anos em novembro deste ano. Para comemorar a data, o BOL começou a visitar algumas das rodas de samba mais tradicionais de São Paulo para desmitificar o que poeta carioca Vinícius de Moraes afirmou em 1960: que a capital paulista seria o túmulo do samba. O Samba da Vela, a primeira roda de samba visitada por nossa equipe, é um ritual cheio de energia e seriedade.

Todas as segundas-feiras, uma mesa é posta no meio de um galpão da Casa de Cultura de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo. No centro do móvel com toalha de renda nas cores branca, azul e rosa, uma vela é acesa às 20h45 e ilumina uma roda de músicos, compositores e amantes da batucada, ao redor da chama que se queima enquanto a música toca.

A música "Acendeu a Vela" dá início à cantoria, que só acaba quando a fogo se apaga: "Acendeu a vela, o samba já vai começar/Ela é quem chama, que é viva a chama pro povo cantar/A fé que não cansa/ Mantém a esperança do nosso viver/O samba da vela está esperando você".

O evento é uma tradição cultuada há quase 16 anos. O grupo foi criado em 2000 por José Alfredo Gonçalves de Miranda (o Paquera - in memoria), José Marilton da Cruz (o Chapinha) e os irmãos Maurílio e Magno de Oliveira Souza. A madrinha do grupo é a renomada sambista carioca Beth Carvalho, que já gravou dois sambas vindos da roda: "Melhor Pra Nós Dois" (de Paquera, Magno Souza e Maurílio de Oliveira) e "A Comunidade Chora" (de Magno Souza, Maurílio de Oliveira e Edvaldo Galdino).

A roda é aberta para o público em geral. Quem quiser pode ajudar com a contribuição simbólica de R$ 5 como ingresso. Compositores desconhecidos são convidados a soltar a voz e mostrar novas músicas, acompanhados pelos veteranos. As canções são julgadas pela comissão da "Vela", e as melhores são eternizadas ficando disponíveis para quem quiser gravá-las.

"Nossa ideia inicial era cantar sambas de Cartola, Noel Rosa, Adoniran Barbosa e etc. Uma semana antes de inaugurar o Samba da Vela, nós nos reunimos para definir as regras do grupo. No final do encontro, começamos a cantar sambas inéditos que eram nossos. Fomos até as 3h da manhã cantando nossas canções. Foi aí que me pintou a ideia de cantar nossos sambas ao invés de cantar o samba dos outros, porque senão nunca ninguém saberia da existência das nossas músicas", explica o cearense Chapinha, um dos fundadores da roda, de 58 anos, que compõe samba desde os 14.

A vela, símbolo do grupo, surgiu para delimitar o tempo das apresentações. "Ficou aquele dilema: como parar o samba antes da meia-noite? Eu sugeri um despertador. O Maurílio deu a ideia de um galo. O Magno, uma ampulheta. E o Paquera, uma vela, que está conosco até hoje nas mesas", relembra Chapinha.

Tradição há quase 16 anos

O Samba da Vela completa 16 anos em 17 de julho deste ano. O primeiro espaço ocupado pela roda, em 2000, foi o bar Ziriguidum, onde Chapinha era um dos sócios. Em 2002, a Casa de Cultura de Santo Amaro se tornou a sede do grupo, que passou a receber mais de 100 pessoas, que adentram o local em silêncio, para apreciar o ritmo do samba. Mas por que o silêncio? "Quando a gente vai ao teatro, a gente não fica fazendo barulho. Quando a gente vai à missa, também não. Então a gente difundiu isso. Aqui é um pouco de cultura com dinâmica de alegria, mas também tem um pouco de religiosidade", explica Chapinha.

Como um de seus sonhos é fazer com que o Samba da Vela se mantenha vivo para sempre, Chapinha fez questão de apresentar seu maior tesouro ao filho Webert Ferreira quando ele ainda tinha 13 anos. "Quando cheguei aqui, percebi que já tinha o samba na veia. Comecei a aprender a tocar, cantar e, quando vi, já diziam que o que eu fazia era cultura. Eu nem sabia o que era isso", afirmou Webert, também conhecido como Bebeto, hoje com 23 anos.

Samba da Vela - Bárbara Forte e Fernanda Fadel/BOL - Bárbara Forte e Fernanda Fadel/BOL
Compositor embala o público do Samba da Vela cantando uma de suas obras
Imagem: Bárbara Forte e Fernanda Fadel/BOL
Segundo Webert, a roda de samba tem um grande papel social: ajuda a comunidade com conselhos e até já tirou gente da criminalidade. "Estamos abertos a todo o tipo de gente que goste de samba. Com o tempo, alguns jovens que nos visitam chegam a mudar de rumo na vida por conta da nossa palavra em forma de música", revela.

Caio Prado, contador de 42 anos, é um dos músicos e compositores que compõem a roda. Ele acompanha, na percussão, os sambas entoados para unir com a voz dos compositores. Caio fez parte do início da formação do grupo há 15 anos, ficou cerca de 10 anos afastado, e voltou há um ano.

Ele conta que o sentido do grupo vai além da batucada: "Este encontro em formato de roda significa que somos todos iguais. Significa também que estamos passando conhecimento dos mais velhos aos mais novos. A questão musical quando chega aqui é só a pontinha de um iceberg".

Durante a visita de nossa reportagem à roda, vimos o jovem compositor Ricardo Leonel apresentar uma composição autoral que retrata os tempos de crise: "A inflação está subindo/E eu estou descendo/Estou ficando no fundo do poço/ Tá virando um angu de caroço/ Esse barco já vai naufragar/ Tem que ser valente meu irmão/ Pra viver neste mundo do cão/ Estou pedindo pra Deus outra vida/Pois esta eu não aguento mais não".

Na palma da mão, os entusiastas do público entoaram a canção. Um deles era Alexandro Souza da Fonseca, portuário de 41 anos, que saiu de Santos (SP) com a mulher, Valéria Amorim de Souza Santos, enfermeira de 51 anos, para prestigiar a roda. Os dois, que se conheceram por conta do gosto musical, contam por que viajar do litoral paulista até a capital paulista, para apreciar o Samba da Vela.

"Aqui eles levam o ritmo a sério, no começo achei estranho não ter tumulto, bebida (o local não serve bebidas alcoólicas). Mas isso faz a diferença", diz Alexandro. Segundo ele, a roda é quase um "culto".

E Chapinha parece confirmar que o Samba da Vela é mesmo uma cerimônia de devoção, quando canta sua poesia com o clamor de uma reza:

"Eu preciso encontrar um país onde a corrupção não seja um hobbie/ Que tenha justiça, mas a justiça não ouse condenar só negros e pobres/ Eu preciso encontrar um país onde ninguém enriqueça em nome da fé e prazer verdadeiro do craque seja fazer gols como Neymar e Pelé/ Eu preciso encontrar um país onde tenha respeito, austero pudor e qualquer pessoa em pleno direito diga 'adeus, preconceito', de raça e de cor/ Eu preciso encontrar um país onde ser solidário seja um ato gentil. Eu prometo que vou encontrar e esse país vai chamar-se Brasil!"

Ao final das apresentações, é a hora de Aparecida Silvério de Jesus, de 52 anos, brilhar no salão da Casa de Cultura de Santo Amaro. Ela e sua filha, Marcela, de 23 anos, preparam, voluntariamente, as refeições servidas quando finda o samba.

Cida, como é conhecida pela comunidade, revela que o Samba da Vela é um lugar mágico, onde conhece pessoas e faz amigos. "Estou aqui desde o começo, era auxiliar de cozinha. Hoje, sou eu que comando."

"Depois do samba saio correndo com a minha filha para pegar a última lotação, moro em Embu das Artes. Chegamos em casa apenas às 2h, para estar de pé às 5h. Se vale a pena? Claro que vale", diz a cozinheira, com um largo sorriso no rosto.

Samba da Vela

Endereço: Praça Dr. Francisco Ferreira Lopes, 434, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo
Horário: Todas as segundas-feiras. O samba começa às 20h45 e só termina quando a vela se apaga 
Telefone: (11) 5522-8897 
Entrada: o público pode contribuir com uma quantia simbólica de R$ 5 para o ingresso, porém o pagamento não é obrigatório
Atenção: o local não serve bebidas alcoólicas