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Já tombou hoje? Nova geração de artistas "lacra" contra a caretice

Tássia Reis - Reprodução  - Reprodução
Tássia Reis
Imagem: Reprodução

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

01/06/2016 12h15

Quem reclama que não tem nada de novo e representativo na música brasileira é porque ainda não viu uma nova geração de artistas “tombar” à sua frente. 

Mesmo sem discos completos, ou o talento já lapidado, a geração tombamento não se uniu necessariamente por uma unidade sonora. Seja no rap, no soul ou na MPB, algo maior tem fascinado um público jovem: o grito contra a caretice – na arte e na vida.

Para isso, vale se vestir como bem entender, amar quem der na telha e questionar as convenções de beleza e identidade de gênero. É o momento da “lacração”. Não sabe o que é? Nem tente o dicionário. “Lacração é quando a gente aceita na nossa vida um estado de maravilhosidade. É o momento de empoderamento”, explica Liniker Barros.

Prestes a completar 21 anos, e com apenas três músicas lançadas no EP “Cru” ao lado da sua banda Liniker e os Caramelows, o cantor tem tocado uma multidão por onde passa –seja nos views de seus vídeos no YouTube ou nos concorridos shows que tem feito.

Liniker Barros - Reprodução - Reprodução
Liniker Barros
Imagem: Reprodução
 [Lacração] é aceitar na nossa vida um estado de maravilhosidade. É o momento de empoderamento 
 

Mais do que a voz rouca, que derrama em canções de levada soul, Liniker causa fascínio pelo batom na boca e a liberdade que exala no palco. Vindo de Araraquara, no interior de São Paulo, ele só tombou de vez quando ouviu da funkeira trans Linn da Quebrada: “Bicha, a senhora precisa parar de ser medrosa, bota logo uma saia, um batom”.

A inspiração que já vinha da mãe, dançarina nata de samba rock que criou Liniker sozinha, enfim, transbordou pelos poros. Ele não se esquece da sensação: “Foi uma descoberta de mundo”.

[Tombamento] é permitir que ninguém deixe a gente para baixo, que  digam que a gente é feia, que a gente é inferior, porque a gente não é
Liniker

As Bahias Raquel Virginia e Assucena Assucena descobriam que eram trans juntas, durante curso de História na USP - Reprodução - Reprodução
Raquel Virginia e Assucena Assucena, cantoras de As Bahias e a Cozinha Mineira, descobriam que eram trans ao mesmo tempo, durante curso de História na USP
Imagem: Reprodução
Descobrindo o mundo

A cantora trans paulistana Raquel Virgínia, 27, descobriu o seu momento de "tombar" quando saiu de vestido na rua pela primeira vez. “Estava morrendo de medo. Fui xingada porque na época eu não usava base. Para aquelas pessoas era algo altamente bizarro”, relembra. “Foi a época mais difícil e solitária, mas foi meu momento”.

Mas não só de festa vive o tombamento. “Está acontecendo um movimento político, independente de nós. Muitos paradigmas estão sendo colocados para baixo. A sociedade coloca a travesti como se a única oportunidade dela fosse o programa. Muita gente acha que eu sou garota de programa. Quando descobrem que sou uma artista de MPB, ficam chocados”, conta Raquel.

Ela está à frente dos vocais e composições da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, junto com a amiga Assucena Assucena, 28, que conheceu no curso de História na Universidade de São Paulo (USP). O questionamento do próprio gênero aconteceu ao mesmo tempo para as duas. Foi natural que dividissem o período conturbado entre si, acompanhado de doses cavalares de Gal Costa.

Do período de depressão saiu “Mulher”, o primeiro álbum, lançado em dezembro de 2015, e dedicada ao gênero que, segundo elas, começou essa revolução. “Essa liberdade começa no corpo. Eu não preciso mais ser bela, recatada e do lar. Eu vou sair como eu quiser, meu bem. Eu vou ser do jeito que eu quiser”, explica Assucena.

Quando o lacre não acontece, Assucena volta ao pé da vitrola, assim como fazia quando criança em Vitória da Conquista, na Bahia. “Eu era aquele menininho viado, sabe? Ficava pela rua tentando dar aqueles agudos da Whitney Houston”.

A parada dessa geração é a militância. E isso acontece toda vez que estamos em um momento político difícil, queremos mostrar que somos livres.

É com essa força feminina que Tássia Reis, 26, tem marcado presença no rap. Vinda de Jacareí, região metropolitana de São Paulo, começou na dança, mas descobriu um prazer escondido pela insegurança quando foi chamada, de surpresa, para rimar em um show de rap. “Aí eu senti o bafo do lacre”, conta. “Eu até queria cantar, mas não achava que eu tinha capacidade. Na verdade, eu não achava que era uma grande lacradora.”

Hoje ela integra coletâneas gringas e é apontada como o novo nome do rap jazz no Brasil. No palco, é uma referência fashion e de atitude, principalmente para o feminismo negro.

Será assim também nos próximos meses, quando todos eles saírem em turnê juntos. Sob o nome de “Salada das Frutas”, a trupe viajará para Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. A primeira parada, no Vento Festival, em 10 de junho, em Ilhabela (litoral paulista), contará ainda com o rapper gay Rico Dalasam.

Com a lacração garantida, o tombamento no palco é consequência. “Esse fascínio da plateia vem dessa representatividade, de ser um espelho. Eu mesmo procurei durante muito tempo um espelho que parecesse comigo”, reflete Liniker.

“A parada dessa geração é a militância. E isso acontece toda vez que estamos em um momento político difícil, queremos mostrar que somos livres”, “lacra” Tássia.