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Por que os grandes festivais de música estão ficando todos iguais?

Festivais de música pelo mundo  - AP/UOL
Festivais de música pelo mundo Imagem: AP/UOL

André Barcinski

Colaboração para o UOL

27/07/2016 10h31

LCD Soundystem, Major Lazer, Ellie Goulding, M83, Foals, Tame Impala, Flume, Haim, The Last Shadow Puppets. O cartaz do Lollapalooza de Chicago, que chega aos 25 anos neste fim de semana, pode parecer uma sopa de letrinhas incompreensível para quem não acompanha o cenário da música dita alternativa, mas olhando mais de perto é praticamente uma xerox do cardápio que oferecem outros grandes festivais do gênero espalhados pelo mundo, como Coachella, Bonnaroo, Glastonbury ou Austin City Limits.

Idealizados e ainda vendidos como oportunidade ímpar para conferir o que tem de mais novo e descolado no pop, rock e eletrônico no planeta, grandes eventos como esses têm se tornado cada vez mais parecidos, tanto nos line-up quanto nas experiências oferecidas ao público. Como isso aconteceu?

A resposta está na dominação corporativa dos grandes festivais. Hoje, três ou quatro empresas controlam alguns dos maiores eventos musicais do mundo. Além do Lollapalooza, a Live Nation é dona do Bonnaroo, do Austin City Limits e do festival de música eletrônica EDC. A AEG Live é dona do Coachella, do Stagecoach e do Desert Trip, festival que acontecerá em outubro com Stones, Dylan, Roger Waters, The Who, Paul McCartney e Neil Young. A SFX é dona de dois imensos festivais de música eletrônica, Tomorrowland e Electric Zoo, e comprou 50% do Rock in Rio.

A mesmice é tanta que até o jornal “The New York Times”, que está longe de ser um baluarte da cena de música independente, desistiu de cobrir grandes festivais. Em artigo publicado em abril de 2016, três críticos musicais do jornal, Jon Pareles, Ben Ratliff e Jon Caramanica, anunciaram que não farão mais coberturas de grandes eventos como Coachella e Bonnaroo, preferindo festivais menores e de escalações mais ousadas.

“Em termos numéricos, festivais como Bonnaroo e Coachella são eventos importantes, atraindo 80 mil a 90 mil pessoas por fim de semana. Ainda são ritos de passagem para jovens universitários, mas não significam muito para críticos musicais", diz o artigo. "Suas escalações costumavam ser excitantes, se excitante significa especial, e especial significa raro, e raro significa relevante. Mas não são mais. (...) Festivais são um negócio grande demais para não ser homogeneizado e adaptado ao ‘mainstream’. Nenhum cliente em potencial pode sair insatisfeito.”

Mercado de shows

A padronização dos festivais de música é um fenômeno recente, e tem a ver com a maneira como a indústria da música passou a enxergar o mercado de shows a partir da virada do século 21.

No início dos anos 2000, houve uma queda imensa na venda de discos, causada principalmente pela internet. Segundo estudos, a indústria do disco perdeu dois terços de seu valor entre 2000 e 2012. Com isso, grandes empresas ligadas à música se bandearam para um mercado antes dominado por produtores independentes: o mercado de shows.

Corporações como Live Nation, SFX e AEG Live começaram a comprar teatros, assinar artistas e adquirir festivais de música. O número de eventos desse tipo cresceu, assim como o valor dos ingressos. Festivais ficaram cada vez maiores e mais caros, e a concentração de renda aumentou. Hoje, cerca de 90% do faturamento com shows em todo mundo vão para apenas 5% dos artistas mais famosos.

Nem sites como o Pitchfork, bíblia dos “indies” antenados, escapou dos bolsos fundos das grandes empresas. Em outubro do ano passado, o Pitchfork foi vendido para a gigante de mídia Condé Nast, que publica títulos como “Vanity Fair” e “Vogue”.

A dominação corporativa nos maiores festivais de música, embora crescente, não é absoluta. Há exemplos de eventos grandes e que ainda são geridos de forma independente, como o Roskilde (Dinamarca) e Primavera (Barcelona), festivais que geram milhões de euros, doam os lucros para causas sociais e têm grande impacto no turismo de suas respectivas regiões.

Conheça um pouco da história por trás de cada desses megafestivais:

Lollapalooza

Público durante o festival Lollapalooza, no Grant Park, em Chicago  - Divulgação - Divulgação
Público durante o festival Lollapalooza, no Grant Park, em Chicago, em 2008
Imagem: Divulgação
 

Criado em 1991 pelo líder da banda Jane’s Addiction, Perry Farrell, o Lollapalooza foi um marco da popularização do rock alternativo. Surgiu no momento em que despontavam bandas como Nirvana, Pearl Jam e Smashing Pumpkins, e ajudou a revelar nomes como Nine Inch Nails e Rage Against the Machine. Foi um evento inovador, que corria de cidade em cidade dos Estados Unidos apresentando o melhor da música alternativa do período.

Hoje, o Lollapalooza continua grande e importante, mas perdeu o espírito de inovação e independência que possuiu por tantos anos. Isso mudou em dezembro de 2014, quando o festival foi comprado pela gigante Live Nation, uma das maiores empresas de entretenimento do planeta, dona de 300 arenas e teatros em todo o mundo, 850 estações de rádio nos Estados Unidos, e responsável pelo agenciamento de 350 artistas, incluindo Madonna, U2, Jay-Z e Shakira. A Live Nation também é dona da Ticketmaster, a maior empresa de venda de ingressos do mundo.

Se nos primeiros anos do Lollapalooza era Perry Farrell que comandava a escalação de bandas, hoje ele não apita mais. O próprio Farrell confirmou isso à revista “Billboard”: “Não estou mais interessado na escalação do festival, porque sei que está em boas mãos”. É claro que a Live Nation vai priorizar artistas que ela própria agencia. E sabe por que escalações recentes do Lollapalooza sempre trazem astros da música eletrônica, como Skrillex, Major Lazer e Calvin Harris? Simples: porque a Live Nation é dona de várias marcas gigantes de festivais e clubes de música eletrônica, como Cream, Insomniac e Hard.

Coachella

18.abril.2016 - Coachella Music and Arts Festival em Indio, na Califórnia - Zach Cordner/Invision/AP - Zach Cordner/Invision/AP
18.abril.2016 - Coachella Music and Arts Festival em Indio, na Califórnia
Imagem: Zach Cordner/Invision/AP

Começou em 1999 organizado pela Goldenvoice, uma agência independente. O primeiro festival deu um prejuízo de quase um milhão de dólares, o que causou o cancelamento do evento em 2000. No ano seguinte, a gigante AEG Live comprou a Goldenvoice e o Coachella. Hoje, o evento fatura 200 milhões de dólares por ano e é o festival musical mais rentável do mundo. A AEG também virou dona do festival Stagecoach, organizado pelo mesmo pessoal do Coachella.

Bonnaroo

15.jun.2016 - Bonaroo em Manchester, Tennessee - The Knoxville News Sentinel, Adam Lau/AP - The Knoxville News Sentinel, Adam Lau/AP
15.jun.2016 - Bonaroo em Manchester, Tennessee
Imagem: The Knoxville News Sentinel, Adam Lau/AP

Criado em 2002 por um grupo de hippies fãs da banda Phish e inspirados pelos concertos do Grateful Dead, em que milhares de pessoas acampavam nas cercanias dos shows e formavam uma verdade “cidade alternativa”, o Bonnaroo cresceu tanto que, em 2007, os promotores compraram a área de 750 acres (3 km2) no Tennessee onde o evento é realizado anualmente para cerca de 90 mil pessoas. Em 2015, a Live Nation comprou o Bonnaroo.

EDC

4.dez.2015 - EDC (Electric Daisy Carnival) no Brasil  - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
4.dez.2015 - EDC (Electric Daisy Carnival) no Brasil
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Hoje um dos grandes eventos de música eletrônica, era uma pequena “rave” no início dos anos 1990, produzida pelo norte-americano Pasquale Rotella. Em 2013, Rotella vendeu, por 50 milhões de dólares, metade de sua produtora – incluindo controle sobre o EDC – para a Live Nation.

Tomorrowland

23.abr.2016 - Balão de unicórnio alado aparece no Tomorrowland - Flávio Florido/UOL - Flávio Florido/UOL
23.abr.2016 - Balão de unicórnio alado aparece no Tomorrowland no Brasil
Imagem: Flávio Florido/UOL

O grande rival do EDC teve origem semelhante: criado como uma pequena festa há mais de 20 anos pelo holandês Duncan Stutterheim, foi vendido em 2013 para a gigante SFX, uma das maiores produtoras de eventos de música eletrônica do mundo e dona do site de venda de músicas Beatport. Valor: 130 milhões de dólares.

Glastonbury (Inglaterra) e New Orleans Jazz and Heritage Fest (Estados Unidos)

24.jun.2015 - fã se arruma para conferir as atrações noturnas do festival de Glastonbury. - Dylan Martinez/Reuters - Dylan Martinez/Reuters
24.jun.2015 - Festival de Glastonbury
Imagem: Dylan Martinez/Reuters

Dois exemplos de festivais marcados pelo ativismo e preocupação com as respectivas comunidades onde são realizados, mas coproduzidos por grandes empresas do entretenimento. Glastonbury existe desde 1971 e doa grande parte de seu lucro para instituições de caridade, mas a Live Nation é dona de 40% da empresa que produz o evento. Já o New Orleans Fest foi criado em 1970 para celebrar os sons da Louisiana --jazz, zydeco, blues, country, gospel – mas é produzido pela AEG Live e patrocinado pela Shell.