Tom Zé chega aos 80 anos falando de sexo e com recado para conservadores
Em meio à produção de seu novo álbum, “Para Dançar o Sobe nim Mim - Canções Eróticas para Ninar - Urgência Didática", em que revisita o despertar de sua sexualidade, Tom Zé entrou em um impasse que quase abortou o disco. Por um ou outro motivo, todas as músicas pareciam atentar contra a figura feminina.
A crise criativa/existencial só terminou depois que o músico leu, meio que por acaso, uma reportagem na revista "Joyce Pascowitch" sobre os benefícios da massagem tântrica para as mulheres. Resumo da ópera: elas não só poderiam como deveriam gozar. E não há qualquer problema em dizer isso por aí.
"Esses métodos eram usados só por homens, e agora as mulheres começaram a desfrutar dessas massagens que provocam um gozo muito profundo", diz o cantor ao UOL, que completa 80 anos em outubro e, nos dias 8 e 9 daquele mês, lança "Canções Eróticas" em dois shows no Sesc Pompeia, em São Paulo. "Se a Joyce pode publicar isso, nós também podemos publicar tanto sobre esse assunto quanto sobre tantas outras coisas.”
Entre assuntos antes proibitivos do disco estão a boa e velha masturbação (em “Dedo”), uma aula de anatomia do corpo feminino (“Por Baixo”) e o ofegante vaivém da respiração durante o ato ("Sexo”). Nada de figuras de linguagem aqui. Voltando liricamente à sua Irará (BA) dos anos 1940, Tom Zé é extremamente literal nas letras. E também no momento de relembrar de sua "escola do sexo".
"Quis noticiar nesse disco a compreensão desses 'preceptores babás' que giravam em torno de nós. Eles que, compreendendo que as crianças não podiam chegar a idade adulta sem entender o que era sexo, ficavam nos falando coisas com segundo sentido para você ir aprendendo", diz ele.
Uma dessas lições foi tomada em um acanhado puteiro baiano, em sua malfadada primeira vez, aos 15 anos. Foi também nessa época que Tom Zé descobriu tardiamente que seus pais, quem diria, faziam sexo. Antes, aos 6, percebera que, de certa forma, era uma "mulher". Ou o que chama de “despojo de guerra”.
“O mundo civilizado é agressivo à mulher. Aqui em São Paulo, na periferia, assim como em outros lugares, a mulher tem uma função menor. A mulher apanha todo o dia”, professora Tom Zé, que abraça um feminismo sem rótulo em 13 "carinhosas" faixas no álbum.
Recado para eventuais conservadores de plantão? “Quem me interpretar mal [esse disco] que meta o disco no rabo. Interpretar mal como? Uma coisa feita com tanto cuidado, carinhosa.”
UOL - Por que voltar ao “primeiro sexo” às vésperas de completar 80 anos?
Tom Zé - Quando começamos a fazer o disco, a gente descobriu que estava muito propenso a falar de sexo. A primeira música que estava sendo feita era “No Tempo em que Tinha Moça Feia”. Aí a gente viu que a música parecia capaz de ofender um pouco as pessoas por estar falando de mulher feia, como se todo mundo acabasse tirando uma lasca da feiura.
Decidimos que não poderíamos publicar uma música assim. Enquanto isso, vários outros assuntos ligados a sexo surgiram. A base da coisa é o sexo durante a minha infância. Esse era um assunto que não se falava. Pais não falavam com filhos. Na escola não tinha nenhuma referência a isso. De onde eu vim, não tinha quadrinhos sobre isso. Nem no cinema se falava. Era um tabu.
Você defende abertamente as mulheres no disco. O que acha do rótulo de feminista?
Não penso em rótulo de feminista ou não feminista. Quando eu tinha seis anos de idade, um menino chegou na minha rua e me pegou para falar que as filhas da vizinha subiam nas árvores sem calcinha. Fiquei ofendidíssimo com aquilo. Achei uma grosseria. Naquele dia eu vi que, na verdade, eu era uma mulher. Que tomava as dores delas. Porque em todo lugar menino faz essas coisas.
Ao mesmo tempo, tinha medo de que ele descobrisse que eu não estava de acordo com ele. Essa coisa de medo era tão constante na minha infância. Desse dia em diante, passei a ver que, em tudo quanto era setor, situação, a mulher era sempre degradada e tratada mal.
Você sempre fala em "nós" referindo-se a sua mulher, Neusa, que sempre te acompanha.
Ela é a empresária. E também a pessoa culta aqui de casa. Aqui em casa eu sou praticamente analfabeto.
Ela é o e anjo da guarda de Tom Zé?
Ela é uma pessoa muito criativa, muito capaz. Observa o que acontece entre nós e ajuda em todo o disco. Com grandes resultados práticos. Nesse disco, ficamos com mãos atadas no início, porque tudo que a gente tentava fazer parecia agressivo. E ela me ajudou muito. Infelizmente, o mundo civilizado é agressivo com a mulher. Aqui em São Paulo, na periferia, assim como em outros lugares, a mulher tem uma função menor. Na periferia, a mulher apanha todo o dia.
O que falta para mudarmos isso?
Não sei o que falta. Não sou rei da sabedoria. Estou diante de fatos que todos enfrentamos. Deu no jornal que, nas escolas da periferia de São Paulo, uma ou duas meninas praticavam relações sexuais, que já é algo superado no mundo civilizado, e todos apontavam os dedos para elas. E as meninas começaram a parar de poder ir na escola. Ficavam envergonhadas.
Em casa, ninguém entendia o que estava acontecendo. Algumas se suicidaram. Isso acontece num nível primário, de escola. No nível comum, a mulher sofre muito mais. Não tem uma música que diz: “Eu não sej por que estou batendo, mas ela sabe porque está apanhando”?
Foi difícil traduzir esse tipo de questão tão complexa para o formato de música?
Não. Porque a gente foi tratando do assunto de sexo e via claramente isso. Até mesmo quando o sexo é tratado com delicadeza, a mulher costuma ser muito malvista, maltratada e colocada em inferioridade. É um que assunto ofendia a mulher, e não por culpa delas. Chegou um momento em que a gente até achou que não seria capaz de fazer o disco. Mas aí lemos uma reportagem na revista da "Joyce Pascowitch", no aniversário da revista, mostrando alguns desses métodos tântricos de massagem.
Antigamente, esses métodos eram usados só por homens, e agora as mulheres começaram a desfrutar dessas massagens que provocam um gozo muito profundo. O gozo que a mulher tem em casa é um negócio quase formal. Quando lemos, pensamos: “Se a 'Joyce' pode publicar isso, nós também podemos publicar tanto sobre esse assunto quanto sobre tantas outras coisas”.
Hoje há uma certa ascensão de forças conservadoras...
Existe. E quando isso ganha força, aí é que as pessoas passam a denegrir ainda mais a mulher.
Acha que o disco pode ser mal interpretado por essa parcela conservadora?
Não acho, não. Quem me interpretar mal que meta o disco no rabo. Interpretar mal como? Uma coisa feita com tanto cuidado, tão carinhosa...
Voltando a "Canções Eróticas", como foi sua primeira vez?
No meu tempo, tinha uma coisa chamada puteiro. Aí passou um dia, um amigo meu me levou lá, quanto tinha uns 15 anos. E uma hora você se vê em cima de uma mulher e tem aquela toda aquela coisa sem graça chamada primeira vez, né? Assim como se faz normalmente hoje em dia. Continua sendo uma coisa meio frustrante. A minha foi assim.
Naquela época, quando chegava gente de fora em Irará, a gente ia com eles no puteiro e deixava a namorada na porta de casa. E todas elas sabiam para onde você estava indo. Porque com ela você não poderia fazer isso. E ficava tudo bem. Não tinha ciúme, não tinha nada.
O pessoal de fora ficava admirado vendo como tratávamos bem aquelas moças [prostitutas]. Nós dizíamos: “São nossas primas, cara. O que você está pensando?”. Como nós ali na Bahia éramos, na prática, uma família só, se voltássemos três gerações encontraríamos algum grau de parentesco ali. Foi nesse o mundo, pobre, que eu nasci.
Como é ser Tom Zé e chegar aos 80 falando de sexo?
Eu já devia ter tratado esse assunto aos 20, 30, 40 anos. Porque é uma coisa que está na vida de todo mundo. É uma distração, é um interesse, uma curiosidade. É também objeto de maltrato e segregação. Isso sem falar nas outras preferências sexuais.
Hoje, os professores falam sobre sexo em aula. Passa sexo na televisão toda a hora. Antes, você chegava aos 16 anos sem saber que o pai trepava com mãe, como aconteceu comigo. Porra, que mundo é esse? Era um mundo da igreja, que era contra o sexo e a mulher. As religiões todas foram feitas contra a mulher. Até hoje são. É disso que o disco fala.
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