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Livro mostra como Thaíde se tornou uma das vozes mais ativas da periferia

Thaíde durante o lançamento do livro na Bienal do Livro de São Paulo - Leonardo Benassatto/Futura Press/Folhapress
Thaíde durante o lançamento do livro na Bienal do Livro de São Paulo Imagem: Leonardo Benassatto/Futura Press/Folhapress

Guilherme Bryan

Colaboração para o UOL

15/10/2016 07h00

Lançado recentemente, o livro "Thaíde – 30 anos mandando a letra", organizado por Gilberto Yoshinaga, com prefácio de Chico César, mostra como o rapper paulistano Thaíde, cujo nome de batismo é Altair Gonçalves, tornou-se uma das vozes mais representativas da periferia da cidade de São Paulo.

É possível afirmar, por exemplo, que se não fosse ele e o parceiro de vários anos DJ Hum, não existiriam Racionais MCs, cujos integrantes KL Jay e Edi Rock gravaram com a dupla a canção "Luz Negra", composta pelo segundo e Thaíde, Sabotage, Criolo, Emicida, entre outros ícones da capital paulista. "Uma das maiores contribuições do hip hop foi a injeção de autoestima, principalmente na juventude. Outra contribuição muito importante foi a cara que deu à cidade de São Paulo. Não consigo imaginar a cidade sem essa energia", garante Thaíde.
           


O hip hop paulistano começou em meados da década de 1980, tendo como principal ponto de encontro a estação São Bento do metrô, no centro da cidade e antigo reduto dos punks. Ali, jovens como Thaíde passaram a levar seus aparelhos de som e dançar o break, um dos três elementos da cultura hip hop. Os outros dois são grafite e o rap. A respeito dessa época, o próprio rapper comenta na canção "Soul do Hip Hop", de 1994: "Quando eu me lembro dos tempos da São Bento / Vamos dizer no começo do movimento / Lutamos de várias maneiras para conseguir nosso espaço / Não acostumados ao fracasso, mas preparados / Para surpresas e avarezas / Nunca muito, bem muito pouco / Mas saímos do sufoco graças ao nosso esforço".

Nessa mesma época, o rapper conhece o vocalista da banda Ira!, Nasi, e participa de uma festa chamada My Baby, realizada em 1987, no Teatro Mambembe. É lá que ele apresenta a primeira composição "Consciência", que abre o livro e é o primeiro registro de uma temática bastante frequente na obra de Thaíde – a violência na periferia de São Paulo. "Quando escrevi 'Consciência' eu era bem jovem, ainda meio irresponsável e estava começando a descobrir o mundo, começando a refletir sobre a violência que eu tinha presenciado durante toda a minha criação na periferia e que continuava ao meu redor. Foi um momento em que comecei a ver que existem dois caminhos e que é preciso ter consciência para não ir pelo caminho errado", relata no livro.

A parceria com DJ Hum

Foi também na festa do Teatro Mambembe que Thaíde se encontrou com DJ Hum e imediatamente os dois iniciaram uma parceria profissional, cujo primeiro registro foi na coletânea "Hip Hop Cultura de Rua", lançada pelo selo Eldorado em 1988. Os dois emplacaram ali "Homens de Lei" e "Corpo Fechado", que tornou-se um sucesso. "Acredito que 'Corpo Fechado' disputa com 'Sr. Tempo Bom' a posição de minha música 'número um', de grande clássico da minha carreira. Foi uma das primeiras canções que gravei e a que mais se destacou na coletânea 'Hip Hop Cultura de Rua' (1988), disco que projetou Thaíde & DJ Hum para o Brasil e que inspirou muitas gerações de adeptos do hip hop, ao longo de vários anos – aliás, continua a inspirar...", comenta no livro Thaíde a respeito da canção composta com o falecido amigo Marcos Tadeu Telesphoro.

"Thaíde e DJ Hum estabeleceram uma certa qualidade em termos de letras e produção. Uma escola que sempre será referência e respeitada. E sobre o final... até o 'Pra sempre' acaba, porque a dupla não acabaria?", analisa Thaíde.

Capa do livro "30 Anos Mandando a Letra" - Penna Prearo - Penna Prearo
Capa do livro "30 Anos Mandando a Letra"
Imagem: Penna Prearo
Carreira solo

A primeira canção lançada por Thaíde logo após o término da dupla também está no livro. Trata-se de "Caboclinho Comum", lançada com o livro "Pergunte a quem conhece", de 2004. "Eu estava em um momento difícil, ainda repensando todo o meu gerenciamento artístico, iniciando a carreira solo. Precisei me reinventar e me reestruturar aos poucos, aprendendo com erros e decepções", conta em "Thaíde – 30 anos mandando a letra".
           
Como não poderia deixar de ser, também estão no livro as histórias das canções "Respeito é pra quem?", "Malandragem dá um tempo", "Nada pode me parar" e "Sr. Tempo Bom", que trata de nostalgia e a respeito da qual Thaíde brinca: "A todo instante estou sentindo saudades do meu tempo de criança (risos)". Ali estão músicas desde os tempos da dupla com DJ Hum até as mais recentes, como "Hip Hop Puro". "O livro surgiu de uma reunião entre eu e minha equipe. Chegamos à conclusão que um livro contendo as letras que compõem minha trajetória seria um ótimo presente para mim e para os fãs do meu trabalho", conta. "Um dos critérios foi não me apegar ao sucesso da canção, mas escolher as letras mais significativas", explica. De acordo com o compositor, só ficou de fora "Aruanda", por se tratar de uma canção ainda inédita.

Outra temática recorrente nas canções de Thaíde e bastante presente no livro é a da presença da polícia na periferia, como se percebe em "Noite", parceria dele om Marcos Tadeu Telesphoro e Alam Beat, presente no álbum "Humildade e coragem são nossas armas para lutar", de 1992: "A polícia persegue, persegue, mas não consegue encontrar / Os donos dessa imensa escuridão / A noite é minha navalha / À noite não há quem me pegue / De alma lavada, de farda ou de arma na mão".

Assim como há muitas letras a respeito de discriminação racial, caso de "Afro-brasileiro", do álbum de mesmo nome de 1995: "E mesmo assim de novo mostro a vocês, outra vez / A importância de ser negro por inteiro / Reconhecendo o seu valor / E, por favor, respeitando o irmão mais claro / Que está sempre do seu lado / Torcendo pra você vencer / E crê na energia africana / Que emana das sementes espalhadas pelo mundo inteiro / Seja escuro, mas seja escuro e verdadeiro".

Thaíde acredita que hoje se discute mais a discriminação racial, mas o problema permanece: "Ainda não temos espaço nas TVs, rádios. Ainda não vemos médicos, engenheiros, empresários que sejam afrodescendentes e sei que não é por falta de capacidade e sim por falta de vergonha na cara da sociedade brasileira".

Portanto, desde o primeiro momento em que Thaíde passou a frequentar o largo São Bento e formou a dupla com DJ Hum, lá se vão 30 anos e os problemas sociais da periferia de São Paulo parecem bastante distantes de serem resolvidos. Mesmo assim, apesar de todas as agruras, a cultura hip hop tornou-se um dos símbolos mais fortes de resistência das camadas mais pobres da capital paulista. "O hip hop foi a internet as favelas de todo Brasil no final da década de 80. Era nosso meio de comunicação, os menos favorecidos se favorecendo de uma cultura", comemora Thaíde. E ao ser questionado se deixou algum legado para os outros rappers, ele é taxativo: "Respeitar a todos e a todas, e, acima de tudo, se respeitar. Pelo menos é assim que ajo".