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"Há reflexos do punk na 'uberização do mundo'", diz Marcelo Rubens Paiva

Clemente e Marcelo Rubens Paiva durante lançamento do livro "Meninos em Fúria" - Eduardo Anizelli/Folhapress
Clemente e Marcelo Rubens Paiva durante lançamento do livro "Meninos em Fúria" Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Guilherme Bryan

Colaboração para UOL

22/10/2016 07h00

Em 1982, Marcelo Rubens Paiva, que lançava o best-seller “Feliz Ano Velho”, se encontrava com Clemente Tadeu Nascimento, líder da banda punk Inocentes, no festival O Começo do Fim do Mundo, realizado no Sesc Pompeia. Assim nascia uma amizade que já dura quase 35 anos e que acaba de render uma parceria literária, o livro “Meninos em Fúria”.

Por meio da trajetória dos dois autores pela década de 1980, o livro defende a tese de que, assim como nas grandes metrópoles do mundo, caso de Londres e Nova York, também houve em São Paulo um movimento jovem de periferia que jamais se repetiria com a mesma contundência, mas que deixaria marcas profundas na cultura atual. E que parecia muito mais divertido viver naqueles anos em que as barreiras sociais pareciam, de certo modo, serem derrubadas em casas noturnas, que mais pareciam inferninhos, localizadas em grande maioria na região central da cidade.
           
Outro aspecto que uniu essa geração foi o lema punk “do it yourself” (“faça você mesmo”), que tornava possível que qualquer jovem, mesmo com pouca ou nenhuma habilidade, passasse a atuar na área de interesse. Portanto, quem queria fazer teatro, subia no palco; quem queria ter uma banda, descolava uma guitarra, um amplificador, um baixo e uma bateria, e mandava seu som de apenas três acordes; quem queria escrever, tratava de colocar no papel de livros, jornais ou revistas suas impressões sobre a vida.

Esse lema foi tão determinante que seus reflexos, segundo Marcelo Rubens Paiva, ainda são sentidos na sociedade atual, por exemplo, na existência da internet e do Uber. “Já ouvi outros intelectuais falarem que, se você pensar na geração que fez e consolidou a internet, é a mesma que nasceu ouvindo Ramones, Sex Pistols e Clash, e esse espírito do faça você mesmo defende que você seja o dono do seu canal, da sua gravadora, seja o fotógrafo, o colunista e dono do seu canal. Ou seja, não dependia da indústria para você ir atrás de uma forma de se expressar”, afirma.

Marcelo lembra que o lema servia originalmente para meninos sem condições financeiras, como Clemente, formarem suas bandas e não esperarem gravadoras os contratarem. “Na internet, é muito parecido, com os Youtubers, os bloggers, pessoas que fazem livros sem esperar um grande mercado atrás deles”, acrescenta. O Uber, para ele, é uma espécie de movimento punk na construção de algo em que cada pessoa é o próprio motorista, sem precisar de licenças, com a diferença de que, neste caso, há uma empresa capitalista comandando. Outro exemplo são as start-ups, dentro de um universo conhecido como economia criativa em que as pessoas são donas de seus próprios negócios e compartilham escritórios com outros autônomos.

Capa de "Meninos em Fúria" - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Meninos em Fúria"
Imagem: Divulgação
Gangues originaram as bandas punks
O livro destaca o quanto as brigas de gangues foram importantes para a constituição de um movimento cultural de juventude desde os anos 1950. E, no caso do punk paulistano, não foi diferente.

Há, inclusive, vários exemplos de filmes que retratavam a juventude através desses grupos, como "O Selvagem" (1953), estrelado por Marlon Brando e cuja gangue de motociclistas deu o nome aos Beatles; “Juventude Transviada” (1955), que transformou James Dean num ícone; o musical “Amor, Sublime Amor” (West Side Story, 1961), que inspirou Martin Scorsese a realizar o videoclipe “Bad”, com Michael Jackson; “The Warriors – Os Selvagens da Noite” (1979), dirigido por Walter Hill; e “O Selvagem da Motocicleta” (1983), assinado por Francis Ford Coppola, entre tantos outros. Para Marcelo Rubens Paiva, há esses casos até na obra de William Shakespeare, caso de “Romeu e Julieta” e a rivalidade entre Montecchios e Capuletos.

"O ganguismo se deu no movimento punk e hoje existe ainda um pouco, mas nem se compara com o que houve não só no Brasil, mas em cidades como Los Angeles e Londres. Foi um período em que a garotada se juntava por proximidade e as bandas punks eram frutos da gangue. De certo modo, cada uma tinha uma banda como representante”. Foi assim o nascimento da gangue Carolina Punk, que depois criou a banda Inocentes. Já os Ratos de Porão eram da Guangue da Morte. E tinham as gangues do ABC que resultaram nas bandas punks daquela região.
           
"O movimento punk se uniu porque descobriu que, no fundo, todas as bandas e todas as gangues representavam uma coisa só: um movimento contra o sistema, contra a ditadura e revolucionário. O Clemente achava que iria fazer a revolução do proletariado. Na verdade, eram gangues que encontraram um inimigo em comum e resolveram se unir em festivais", assegura. O mais importante deles foi justamente O Começo do Fim do Mundo, do Sesc Pompéia, que representou, de certo modo, o final do movimento em São Paulo pelo fato de terminar com uma verdadeira guerra entre punks.
           
Hoje em dia, não se vê mais essas brigas de rua entre gangues nos grandes centros urbanos, como acontecia há três décadas, mas Marcelo Rubens Paiva aponta que talvez esse ganguismo tenha migrado também para a internet, com os “haters”, pequenas gangues que atacam coletivamente uma atriz, negros, homossexuais, etc. Ou seja, ele deixou as ruas e chegou com força total nas redes sociais.

Polícia, funk e hip hop

Para Marcelo Rubens Paiva, o movimento punk também é fruto da ação da polícia nas periferias na virada dos anos 70 para os 80. “Depois de conhecer bem o Clemente e de ouvir ele falar, eu percebi o quanto a periferia sofria e ainda sofre com a ação da polícia. Não é à toa que se compara o hip hop com o movimento punk de antigamente. Quer dizer, o negro da periferia era abordado constantemente, a polícia invadia os shows punks, apreendia, era um costume colocar o revólver na têmpora e na boca. A polícia que as vezes excedia e ultrapassava as fronteiras de classe, matando os garotos de classe média, como a Rota 66, era a mesma que ia para a periferia e não sentia receio nenhum das abordagens violentas, como hoje”.

Não é à toa também que as primeiras reportagens sobre os punks eram sempre resultado do confronto com a polícia. Depois é que passou a ser visto como um movimento cultural, após o festival O Começo do Fim do Mundo. “A ‘Folha de S.Paulo’ é que começou a fazer um retrato fiel do que acontecia nas boates, porque eram frequentadas por jornalistas musicais e por nós, da ECA.", garante.

Hoje, esse espaço cultural dos punks foi herdado pelo funk carioca e pelo hip hop paulistano, pelo menos é o que acredita Marcelo Paiva, no sentido de ser algo que vem da classe operária e da periferia, como também aconteceu com o samba, depois adotado pela elite cultural. “Eu não conheço muito as letras do funk carioca, mas acho que são mais sacanas e sexualizadas. O hip hop não. Tem uma levada bastante mais politizada. E não é tão visceral como foi o punk, porque o sucesso hoje é muito mais pernicioso e corrompedor. O movimento punk não fez sucesso e nem pretendia. Agora o rapaz do funk a primeira coisa que pensa é no sucesso e em como faturar”, analisa.

Já um circuito de casas noturnas como nos anos 80 também não existe mais. As festas acontecem agora na casa de alguém que resolve vender entrada por 10 reais, o que Marcelo, que considera manter o espírito punk na própria vida, denomina de “uberização do mundo”.