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Quem viver verá: O rap ainda é compromisso nas mãos dos filhos de Sabotage

O gueto é o mundo todo: A herança e as influências de Sabotage

UOL Entretenimento

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

18/11/2016 12h27

Treze anos depois de sua morte, a voz de Sabotage ainda ecoa de uma caixa de som distante em uma rua estreita e esburacada na favela do Boqueirão, no bairro da Saúde, Zona Sul de São Paulo. Seu rosto está grafitado em vielas, na parede descascada da casa onde morava e no campinho onde o rapper costumava empinar pipa e que, há dois meses, o time de futebol criado em sua homenagem, o Sabotage F.C., ganhou o campeonato de várzea.

O troféu, um dos orgulhos da comunidade, é exibido no Bar do Bola, em frente à casa onde moram hoje seus herdeiros. Sabotage ainda morava na extinta favela do Canão, também na Zona Sul, quando trocou uma moto antiga pela casa térrea de poucos metros quadrados na quebrada vizinha. Com a participação em filmes como “Carandiru” e “O Invasor”, subiu mais um andar --e outro está em andamento graças ao dinheiro recebido com os direitos autorais, pela primeira vez sob o controle dos filhos desde quando Sabotage foi morto com quatro tiros em 2003.

Tamires e Sabotinha observam as folhas do caderno do pai: a ideia é reuni-las a obra completa de Sabotage em livro - Reprodução - Reprodução
Tamires e Sabotinha observam as folhas do caderno do pai: a ideia é reuni-las a obra completa de Sabotage em livro
Imagem: Reprodução

Após perderem mais de dez anos de arrecadamento no Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e batalharem pelo direito do único disco do rapper lançado em vida, “Rap é Compromisso” (2001), os filhos seguem como uma missão: preservar o legado do pai. 

Tamires, 22, e Wanderson (mais conhecido como Sabotinha), 23, moram no mesmo local onde sempre viveram, com as paredes forradas de fotos de Sabotage, e cercado com os prêmios e pequenos objetos deixados de herança. Parte do inventário vê agora a luz do dia com o lançamento do aguardado segundo disco do pai.

Intitulado apenas como “Sabotage”, o disco pilotado pelos antigos produtores Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno e Rica Amabis, além do auxílio luxuoso de amigos do rapper, como o RZO, BNegão e Negra Li, recicla rimas e flows gravados pelo maestro do Canão em estúdios diversos. Duas das 11 faixas foram gravadas em sua última semana de vida: “Canão foi tão bom” e “Quem Viver Verá”. A renda é exclusiva para a família.

O álbum, lançado nas plataformas digitais há um mês, colocou um dos nomes mais celebrados do rap brasileiro no início dos anos 2000 de volta à cena, conquistando novos ouvintes. “Se meu coroa estivesse vivo, ele estaria orgulhoso de ver onde a gente está. Até me arrepia quando alguém mais novo, que não era nem nascido, chega dizendo que está ouvindo”, se orgulha Sabotinha.

“Cuidar desse trabalho é uma grande responsa. É um sonho que ele tinha, de que as pessoas conhecessem suas letras. Eu não consigo vê-lo como Sabotage. É meu pai, é mais responsabilidade, são as coisas do Maurinho”, explica a filha do meio (o rapper teve uma outra filha fora do casamento, Larissa). “Se não for a família [para administrar], não vai ser mais ninguém”, determina.

Para manter viva a lenda, eles já começam a organizar as muitas páginas de caderno rabiscadas, guardadas a sete chaves, para editar um livro com a obra do pai, e também pilotam uma experiência inédita no Brasil.

Sob uma missão quimérica, uma máquina de inteligência artificial (tentará) criar uma nova música do artista. Rimas, letras, vídeos e registros foram transformados em algoritmos pelo sistema, que já expeliu 130 frases do que poderia ser uma nova letra do Sabotage em pleno 2016. Os antigos amigos do RZO, grupo que o lançou para além das mixtapes, em 2000, ficarão encarregados de compor e produzir a canção.

Lembranças de Maurinho

Mas é na memória dos filhos que Maurinho ainda resiste. “A gente chegava da escola e ele já estava ensaiando. Eu lembro muito da música ‘Um Bom Lugar’, porque ele ficou um mês ensaiando ela na frente do espelho”, relembra Tamires. “Quando chegávamos na porta de casa, eu pensava: ‘Pô, essa música de novo?’”. “Repete ali pro pai, por favor”, respondia Sabotage, que mantinha um ritual próprio para criar suas rimas e cuidar dos filhos.

Deixava duas TVs ligadas --uma sintonizada no jornal, e outra no desenho. Dois rádios também ficavam ligados, um só com as bases, e outro com o dial aleatório. Sabotinha não entendia aquele caos diário no quarto-sala. “Ele via a realidade no jornal, e escrevia a realidade. Mas isso só caiu a ficha depois."

O filho mais velho, que carrega o pai no apelido, se emociona junto com “o velho” em uma das canções novas, “País da Fome: Homens Animais”. Entre as rimas sobre a família e a perda de entes e amigos na caminhada, a voz do rapper --pescada de uma voz guia que deixou gravada-- embarga de emoção: “Quando eu me lembro da senhora, o medo é zé povinho”, canta, sobre a mãe e a iminência de uma repressão da época em que esteve envolvido com o tráfico.

Sabotage acabou morrendo vítima de uma emboscada. Estava no auge. “Um cara que morreu de tiro no chão, largado assim, deixa a gente triste. É difícil aceitar ainda. Mas é uma lição de vida. Pensando nisso tudo, amadureceu mais ainda a nossa mente, porque já mostrou como o mundo é”, observa Sabotinha. “Agora, estamos subindo uma escada”.