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Último malandro do samba, Riachão tenta recordar 500 músicas aos 92 anos

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

30/04/2014 09h20

Com pele sem rugas aparentes e a cabeça ainda fervilhante de melodias e histórias, Riachão nem aparenta ter 92 anos. Usando uma camisa estampada “cheguei”, como ele mesmo descreve, boina branca que contrasta com o cabelo preto sem nenhum sinal grisalho e toalha branca no pescoço, ele está descendo pelo elevador de um hotel em São Paulo, horas antes de se apresentar no Sesc Belenzinho, na sexta-feira (25). A porta do elevador se abre, e entra uma arrumadeira, pedindo licença. Riachão não resiste. Com as costas arqueadas, lança com ternura: “Você tem todo o direito, gatinha”.

Oito anos mais novo que o próprio gênero do samba, com 100 anos completados em 2013, Riachão é, ao lado de Nelson Sargento e Ivone Lara, um dos maiores sambistas vivos. Muita gente pode ainda não conhecê-lo, mas certamente já cantou uma de suas 500 músicas.

“Cada Macaco no Seu Galho (Chô Chuá)”, por exemplo, foi escolhida por Caetano Veloso e Gilberto Gil para oficializar a volta do exílio, nos anos 70. Na época, quando ninguém ainda pensava em inventar a campanha antirracismo "somos todos macacos", Riachão defendia cada qual em seu canto. "O meu galho é na Bahia / o seu é em outro lugar", diz um trecho da letra.

Já Cássia Eller, nos anos 2000, resgatou uma composição de Riachão ao fazer releitura de “Vá Morar com o Diabo”. O sambista relembra: “Gostava muito dela. Foi embora menina jovem, bonita”. Ele não deixa de cantar a música, mas admite que não gosta dos versos, que contam a história de um malandro que bota a mulher para fora de casa. “Eu amo muito as mulheres para mandar uma mulher para o Diabo. A música é minha, e fiz quando um malandro reclamou que a mulher dele não fazia nada. Jesus soprou ela assim na minha cabeça. Canto, mas não gosto.” 



Descobertas

Ao som dessa e de outras canções, o malandro deu pulos, sambou e fez a plateia dançar no show. A cadeira estava no centro do palco para o nonagenário, mas ele só se sentava na hora de conversar com o público. Assim que soavam os primeiros acordes do violão --que ele reproduz com a boca toda vez que tenta se lembrar de alguma canção--, levantava-se rápido. “Tire isso daí, rapaz”, chegou a pedir, referindo-se à cadeira. A energia do legítimo bardo baiano poderá ser vista de novo em breve, no palco do 25° Prêmio da Música Brasileira, em dueto com Criolo. 

Com reconhecimento tardio, como aconteceu com seus companheiros bambas Clementina de Jesus e Cartola, Riachão tem poucos registros fonográficos.  Embora tenha sido regravado por Jackson do Pandeiro e Jamelão nos anos 50, lançou o terceiro disco apenas ano passado. “Mundão de Ouro” saiu pelo selo paulista Comando S, em um projeto levado adiante pela cantora Vânia Abreu.

O disco resgata canções inéditas que o sambista vem aos poucos recordando. Ele próprio está em fase de descoberta. Representante da tradição oral, Riachão nunca documentou as 500 canções que diz ter criado. Depende agora da memória. “Às vezes, ele canta a capella, e a gente tem que correr para gravar”, conta o diretor artístico da gravadora, Zé Guilherme. “Até agora, são 71 canções já lembradas.”

Assim como as mulheres são uma de suas paixões --e ele deixa claro que não está falando de preferências sexuais: “vamos esquecer o procedimento de cada um, a mulher, essa palavra, criou a gente”--, Riachão recorre a Deus para definir aquilo que outros artistas chamam de inspiração ou criatividade. “É como o vento. É meu Deus que me entrega. Aquele verso que Deus me deu, e eu jogo no seu ouvido. É isso. É saber que você gostou o que me dá alegria.”

A primeira manifestação de seu dom de compositor veio aos 15 anos, quando era um alfaiate na praça da Sé, em Salvador. Vivia a cantarolar os sambas de lá e do Rio, que tocavam na Rádio Sociedade da Bahia, onde também viria a trabalhar e cantar. Uma página de jornal no chão foi a fagulha. Dizia a manchete: “Se o Rio não escrever, a Bahia não canta”.

“Aquilo bateu no meu coração como uma dor silenciosa”, explica e, como em toda a conversa, completa a resposta com uma canção –a primeira que compôs ao ler a frase no jornal: “Eu sei, que sou malandro, sei / Conheço meu proceder / Eu sei, que sou malandro, sei / Conheço meu proceder / Deixa o dia raiar, deixa o dia raiar / A nossa turma é boa, ela é boa / Somente para batucar".

“Quando cantei esses versos... Que alegria, meu jovem. Eu fiquei a tarde inteira cantando. A partir dessa hora, nunca mais me fugiu essa linha de música”, diz. Após a experiência, não parou de criar. “O locutor da rádio me chamava: 'lá vem Riachão, o homem que não repete música", recorda.

Sem os registros das canções, Riachão sobrevive com a aposentadoria de seu trabalho em um banco em Salvador. “Estou feliz do jeito que aconteceu. Nunca fui ansioso assim. Eu tive uma mentalidade atrasada, nunca liguei para isso. Foi um erro da minha parte. Pedi a Deus perdão pela mania de dizer que não gostava de dinheiro. Minha filha me abriu a mente, dizendo 'o dinheiro vai fugir do senhor'”, conta.

Desde sempre morador do bairro do Garcia, na capital baiana, Riachão vive com uma filha em uma casa de dois andares. Passa o dia a cantarolar, enquanto cuida de uma horta. “Ele desce e sobe escada todos os dias e fica lá na horta, é quase uma fisioterapia”, conta o sobrinho Jacson, que acompanha o tio nas viagens e shows. Come muito e sempre reza antes da primeira garfada. Cuida da voz com limão e gengibre. Embora se gabe de ter sido o maior cachaceiro da história da Bahia, parou de beber há alguns anos. “Mas não porque fazia mal. Cachaça nunca me fez mal”, despista. E as mulheres, como vão? Ele só ri.

Dalvinha aparece em muitas de suas canções. Segunda mulher do sambista, ela morreu em 2008 em um acidente de carro no Rio de Janeiro, em que também morreram os filhos Vonei e Railene, ambos na casa dos 20 anos. Na época, Riachão passou a sair só para visitar as sepulturas. Fez um samba para sair do isolamento. Ele tenta cantar, bate com um pé no chão e resmunga, quando as palavras demoraram a vir à boca: “o que me chateia é isso... quando o samba tá na cabeça e não vem”. E completa: "A tristeza sempre fica no coração do malandro, mas ele joga alegria para o ar".


O último malandro

Riachão é o último malandro a andar por essas bandas. Para alguns, pode ser um personagem, mas ele explica: "É minha natureza, não tenho vaidade, não. É a coisa do malandro. A toalha no pescoço vem da aula de capoeira, vem da senzala. Hoje em dia, a população está diferente, a juventude não entende muito esse lado. Pode até colocar o malandro como vagabundo ainda”, diz, andando devagar pelo quarto de hotel, arrumando sua mala com as roupas para o show à noite.

Não pede ajuda, nem mesmo já no camarim, para colocar nos dedos todos os anéis escolhidos previamente. Com uma bala forte de menta na boca (“estou com a voz ruinzinha”), Riachão se entrega à árdua tarefa. Os anéis têm tamanhos diversos, e ele descobre, aos poucos, em qual dedo cada um serve, cantando: "Hoje é uma espinha na goela / Que atravessou sobre a mesa / Eu só lamento os meus filhos / Que Deus me deu como trilho / Uma estrada sem fim". É a música sobre suas perdas. Quando está pronto, senta-se e seca a testa com um lenço bordado com seu nome. “É... a gente precisa persistir.”