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Stones dão adeus ao Brasil e deixam 200 mil testemunhas na história

Dean Goodman*

Especial para o UOL

04/03/2016 07h00

Com uma pequenina ajuda da chuva, os Rolling Stones guardaram seu melhor para o final, encerrando a etapa brasileira de sua turnê sul-americana em Porto Alegre na quarta-feira (2) diante de uma multidão cujo entusiasmo, dedicação e perseverança superaram os esforços dos fãs do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Não se trata de uma competição e é claro que os Stones não vão sair por aí reclamando da recepção que tiveram em sua primeira turnê no Brasil em 18 anos (a passagem por Copabacana, em 2006, foi para um único show). Ainda assim, o pé d'água incansável que caiu sobre a capital gaúcha uniu banda e público em uma única e encharcada entidade.

O dilúvio também se mostrou hostil a smartphones e câmeras, o que forçou os fãs a focarem os olhos nos músicos e não em seus brinquedinhos tecnológicos. Os Stones também se viram obrigados a dar mais de si, trabalhando duro para manter o pique do público.

O show de quarta-feira no Estádio Beira Rio foi duplamente histórico, marcando a primeira vez da banda em Porto Alegre e possivelmente a última em que os brasileiros verão os Stones em seu território. A banda passou pelo Rio em 20 de fevereiro e por São Paulo em 24 e 27 do mesmo mês.

Fanatismo na Argentina vs. apatia no Brasil
Fãs brasileiros não são tão intensos quanto seus vizinhos na Argentina, onde a paixão pelos Stones transformou os três shows em La Plata, no início de fevereiro, em uma panela de pressão que lembrava uma missa de cantoria e adoração histérica. Não é por acaso que o público de Porto Alegre incluía ônibus lotados de argentinos que viajaram 1.300 Km só de ida para um último gostinho antes de a turnê dos Stones rumar a Lima, Bogotá, México e, finalmente, Havana, em Cuba.

Em contraste, o show do Rio e o segundo em São Paulo tiveram um clima mais de balada, com vendas de cerveja bombando até as últimas notas da última canção do repertório, "Satisfaction", deixando felizes os executivos da Budweiser. O primeiro show em São Paulo, por sua vez, contou com um público mais apático e hipster.

Algumas coisas se assemelharam nos três primeiros shows dos Stones no Brasil, incluindo a fixação por selfies e o aparente desconhecimento do catálogo da banda. O Rio viu a estreia para a turnê sul-americana do single recente "Doom and Gloom". Ninguém deu bola. Poucos, no primeiro show de São Paulo, pareceram apreciar a balada em falseto "Worried About You", do álbum "Tatoo You" (1981), mostrada pela primeira vez nesta turnê. O mesmo se repetiu na segunda data em SP com "All Down the Line", de "Exile on Main Street" (1972). Todos pareceram mais animados diante de hinos batidos como "Honky Tonk Women" e "Miss You".

Em Porto Alegre, os Stones apostaram mais no certeiro, oferecendo aos fãs os dois lados de um conhecido single de 1967, "Let's Spend the Night Together" e "Ruby Tuesday". No total, foram 29 músicas diferentes tocadas pelos Stones no Brasil - 19 por noite, exceto em Porto Alegre, que teve 18 em um show ligeiramente mais curto de duas horas e pouco.

Com um catálogo de mais de 350 canções - a maioria delas clássicos idolatrados -, os Stones ficam no limite entre o entretenimento popular e a exploração escancarada, mas se situam melhor na primeira opção. Eles não são Bruce Springsteen nem o Pearl Jam.

É verdade que a Argentina foi uma oportunidade perdida para a banda experimentar radicalmente. É o único país no mundo onde os Stones poderiam ter tocado lados B e faixas esquecidas de álbuns obscuros e mesmo assim receberem um retorno entusiasmado. Daqui a 20 anos, os fãs estariam comentando em êxtase sobre aquele dia histórico em La Plata em que a banda tocou várias faixas de álbuns como "Their Satanic Majesties Request" (1967), "Goat's Head Soup" (1973) e "Undercover" (1983). Mas não, os argentinos foram brindados com basicamente as mesmas faixas que tocam para suas plateias velhas e entediantes na América do Norte.

Ainda assim, sejamos gratos pelo que pudemos testemunhar. É pouco provável que os Stones voltem a se apresentar para seus fãs devotos na América do Sul, assim como é certo que um dia nunca mais tocarão juntos. O mundo será diferente a partir de então, mas cerca de 200 mil fãs no Brasil poderão dizer "eu estava lá" quando Mick, Keith, Ronnie e Charlie se entregaram de corpo e alma para provar que fazem o maior espetáculo da Terra.

 
 
* Dean Goodman é jornalista e acompanha todos os shows da turnê sul-americana dos Rolling Stones desde a estreia no Chile. Já passou por Argentina, Uruguai e Brasil e continuará seguindo a banda pelos próximos shows no Peru, Colômbia, México e Cuba. É autor do livro "Strange Days: The Adventures of a Grumpy Rock'n'Roll Journalist" e afirma ter assistido a mais de 230 shows dos Rolling Stones em sua carreira.