A ligação entre jazz e pista de dança pode não ser nova, mas o acesso que uma dúzia de produtores de vanguarda da música eletrônica contemporânea tiveram aos arquivos da lendária gravadora de jazz
Verve é.
O resultado desta pilhagem autorizada é a coletânea "Verve Remixed". Em suas doze faixas, as vozes de lendárias damas do jazz como Nina Simone, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Dinah Washington e Astrud Gilberto ganham novo embrulho eletrônico, pela remixagem de feras da música eletrônica.
Thievery Corporation, MJ Cole, Rae & Christian, De-Phazz, Masters At Work, Tricky, King Britt e Dorfmeister con Madrid De los Austrias, todos trouxeram novos arranjos, batidas, sonoridades, inflexões e até mudanças no andamento das vozes das intérpretes destas músicas, que são pontos de referência na história de jazz.
O termo "cantor de jazz" pode ser dúbio, como afirma o crítico musical Gene Lees no livro "Jazz Lives". Além de atribuir uma sensibilidade jazzística não definível ao intérprete, o termo denota alguém que usa a voz para improvisar.
Em uma música "bem feita", a melodia carrega uma relação significante para a inflexão natural das palavras. Alterações na melodia comprometem o significado e diminuem o efeito dramático da música como um todo. Assim, o cantor de jazz lidaria justamente com esse risco, o de interferir nessa relação musical premeditada.
Os remixes de "Verve Remixed" trabalham exatamente no terreno desse risco. São esses trechos de improvisação das interpretações originais que são aproveitados e processados até o limite da desconstrução. Uma frase vocal que é tirada do fim do original e colocado no meio da nova versão, ou apenas uma parte da melodia original que é aproveitada.
Nisso surgem improvisações sensacionais, não nos vocais ou na instrumentação, mas na mesa de mixagem.
E para aqueles que quiserem conhecer os clássicos que serviram de matéria prima para essas releituras, a Verve lançou "Verve Unmixed", com as mesmas faixas em suas versões originais.
Leia e ouça faixa a faixa:
Willie Bobo, "
Spanish Grease" (Dorfmeister com Madrid De Los Austrias Muga Reserva)
A Percussão incendiária do norte americano Willie Bobo, um dos precursores do latin jazz, é aqui retrabalhada pela metade da dupla vienense Kruder & Dorfmeister, Richard Dorfmeister, junto com a dupla também vienense de DJs e produtores Madrid de los Austrias. É "copy and paste" dançante.
Carmen McRae, "
How Long Has this been Going On" (MJ Cole)
Maestro do speed garage inglês ou
two step , MJ Cole acelera e picota este clássico e cria uma hábil e sofisticada seqüência de batidas secas e quebradas com o vocal de Carmen McRae deslizando por cima da base e de pequenas entradas de teclados. É deliciosamente kitsch.
Astrud Gilberto, "
Who needs forever?" "
(Thievery Corporation)
A música mais óbvia desta coletânea e mais tradicionalmente lounge. É bossa acelerada com efeitos sintetizados. A voz da Astrud é cool e efêmera até não poder mais. A base é da dupla canadense, Thievery Corporation, uma das mais culpada pela onda lounge. Combina com gin tônica, lava lamp e Paco Rabanne.
Dinah Washington, "
Is You Is or Is You Ain't My Baby" (Rae & Christian)
Originários de Manchester, os DJs e produtores Mark Rae e Steve Christian dão uma urgência ao original na voz da Dinah Washington, aqui filtrada com ecos e reverbs, quando canta o bem humorado e crucial "I love a man who is always late everytime we have a date, but I love him." É da fase não gospel de uma das vozes mais versáteis do jazz. Virou um jogo entre a voz e sopros, com baixo e batida nervosa.
Nina Simone, "
Feelin' Good" (Joe Claussell)
Uma seqüência de teclados sonhadores com batida lenta resulta numa sonoridade exuberante, que culmina com a sempre dramática entrada da voz sufocante e ardente de Nina Simone. Faixa produzida pelo nova-iorquino Clausell - grande garimpeiro das batidas world music.
Shirley Horn, "
Return to Paradise" (Mark De Clive-Lowe)
Esta versão traz uma base house, com breaks preenchidos com o timbre relax e suave de Horn. Curioso e dançante. Pena que não aproveite a grande pianista que Shirley Horn é.
Ella Fitzgerald, "
Wait 'Till You See Him" (De-Phazz)
Como resumiu o jornal espanhol, El País, na sua resenha sobre o
De-Phazz: "o grupo cultiva a música de salão eletrônica e elegante". O mesmo vale para esta versão arquitetada por
Pit Baumgartner e o seu grupo de alemães aficionados.
Billie Holiday, "
Don't Explain" (Dzihan & Kamien)
Junto com a versão do De-Phazz, é a faixa mais ambient desta coletânea. A voz pequena mas expressiva de Holiday contrasta com uma base de batidas hip hop composta de tablas, sons assobiados e efeitos sintetizados.
Nina Simone, "
See-line Woman" (Masters At Work)
A canção abre com uma parte picotada da percussão da versão original. Após uma breve introdução de flauta, a música vira um house quatro por quatro assinado pela dupla Louie Vega e Kenny Gonzalez -os inventores do Latin House- e com os vocais de Nina Simone, uma das vozes mais intensas e expressivas da música popular. Há também trechos animados do piano original de La Simone.
Sarah Vaughan, "
Summertime" (UFO)
Bastante respeitoso com a versão original, o trio do United Future Organization (dois japoneses e um francês) produziu um vistoso trip hop que, como o original, soa ondulante como a brisa de verão.
Billie Holiday, "
Strange Fruit" (Tricky)
Tem tudo a ver -o estranho inglês Tricky remixando a fantasmagórica música de autoria de Billie Holiday, sobre um negro enforcado em uma árvore. É, em todos os sentidos, a música mais ameaçadora desta coletânea, com a tensa linha de baixo fornecida por Tricky.
Tony Scott, "
Hare Krishna" (
King Britt)
O produtor King Britt é mais conhecido pela sua garimpagem sonora no universo funk das décadas de 70 e 80, mas desta vez o remix foi conceitual. Britt criou um mantra sonoro na sua versão da interpretação do clarinetista de bop Tony Scott, e sua extensa pesquisa de música clássica do oriente.