"Eu tenho vergonha da minha felicidade", diz Morrissey em autobiografia
Um dos músicos britânicos de maior sucesso no Reino Unido desde o final do século passado teve, até agora, uma vida "cinza", triste e melancólica --com pequenos momentos de alegria quase escondidos em sua história. "Eu tenho vergonha da minha própria felicidade", confessa Morrissey em uma frase perdida, depois de quase 500 páginas de uma narrativa de fluxo complicado de sua recém-lançada autobiografia.
Capa da autobiografia de Morrissey, lançada pela editora Penguin Classics
A vida do ex-vocalista dos Smiths, na inconfundível voz do próprio músico de 54 anos, é o tema de "Autobiography", livro que dominou a atenção da imprensa inglesa na última semana, uma autobiografia publicada com pompa de "clássico" da literatura. Até mesmo a foto escolhida para estampar a capa do livro --um retrato em preto e branco, em vez de momentos de triunfo no palco-- deixa em evidência o tom sóbrio e sério, mas triste da obra.
O livro trata de toda a vida do músico desde seu nascimento, a relação com sua família, as dificuldades enfrentadas por ele na escola, suas primeiras paixões (que ele diz serem "humanssexuais"), as experiências com a música (primeiro como crítico, depois como cantor), a passagem pelo The Smiths, o sucesso mundial e a carreira solo. A história tinha tudo para ter um tom feliz e de conquista, mas, como diz em uma de suas músicas mais famosas, até o céu sabe que Morrissey se sente "miserável".
Desde o começo do livro é quase possível ouvir a voz anasalada do cantor contando sua história, em um tom melancólico. Logo no começo da obra ele diz que "naturalmente" quase matou sua mãe "por ter uma cabeça muito grande". Depois diz que, por quatro vezes, sua irmã tentou matá-lo ainda bebê. Tudo é muito difícil em sua infância na Manchester do pós-guerra. A cidade não tem cor, é triste, e "pássaros se abstêm de cantar". A infância é dura.
No texto, Morrissey usa o termo "tristeza" mais que o dobro de vezes que a palavra "felicidade". Mesmo em momentos em que tudo parece bem, com o sucesso em sua carreira de cantor, sempre há espaço para o tom de lamento e para reclamações de que rádios ignoravam a banda. "Alegria e tristeza normalmente se encontram lado a lado", garante.
Lembranças do Brasil
Em um dos raros momentos em que cita apenas momentos alegres no livro, Morrissey relembra sobre experiências em turnês pelo mundo. O cantor destaca a lembrança de uma passagem pelo Brasil, que marcou sua vida:
"Nenhum sonho poderia jamais ser igual ao meu primeiro show em São Paulo, no Brasil, quando ao público levantou uma garota acima das suas cabeças em minha direção e, quando ela se aproximou, pude ver que ela segurava um bastão, e mais de perto, pude ver que ela era cega, e quando o público colocou ela delicadamente no palco, ela me entregou uma nota em que se lia 'Não posso vê-lo, mas amo você'".
Música
Como seria natural de se esperar em um livro sobre um dos cantores mais populares em seu país, os trechos em que Morrissey fala sobre sua relação com a música são os que mais prendem o leitor.
A contracapa do livro destaca que em 2006 Morrissey foi eleito pela audiência da rede de TV BBC como o "segundo maior ícone britânico vivo", perdendo apenas para o naturalista Sir David Attenborough, famoso por apresentar programas de TV no país. É interessante perceber o que aparenta ser um sentimento de perseguição de Morrissey, apesar de toda aclamação popular. O cantor parece se sentir atacado por todos os lados, questionado e até mesmo boicotado pelas rádios --por mais que sua banda acabe se tornando uma das mais elogiadas do país.
Os Smiths, entretanto, que são provavelmente o principal motivo pelo qual Morrissey é conhecido no mundo, acabam não ganhando o destaque que se poderia esperar. Menos de 20% do livro trata do tempo em que a banda estava reunida, nos anos 1980 --o grupo é mencionado uma centena de vezes ao longo das quase 500 páginas.
O sucesso da banda, mesmo com sua divulgação em todo o mundo, não chega a encher os bolsos dos integrantes, ele conta em um momento. "Os Smiths são repetidamente apontados como a melhor banda no país, mas mesmo assim não conseguimos nenhum sucesso visível", lamenta em outro trecho.
Morrissey trata praticamente como um "mistério" a separação da banda que marcou sua história. A versão mais tradicional contada pelos outros músicos e por testemunhas, entretanto, é que o grupo teria se desentendido após o vocalista rejeitar a parceria com um empresário, o que acabou levando à separação.
Experimento literário
A narrativa do livro é muito bem construída, mas a estrutura do texto é densa e a leitura flui com dificuldade em muitos momentos das 480 páginas.
Morrissey preferiu encarar a obra como um "experimento" de estilo literário, e por isso não há divisão de capítulos, e muitas vezes nem mesmo uma divisão muito clara entre os temas e épocas que ele descreve.
Para a crítica britânica, entretanto, isso é uma indicação de falta de edição no texto final --o que seria visto também em termos grafados de forma americana, em vez da inglesa que seria mais provável nas mãos de Morrissey.
O começo do livro, em que narra seu nascimento e infância, não tem quebra de parágrafos, e nem uma indicação efetiva do rumo que a história vai tomar. Isso tudo associado ao tom quase sempre arrastado e melancólico, que dificulta a leitura de quem é Morrissey.
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