Artistas perdem vergonha de "vaquinha" e lançam CDs com a ajuda do público
A essa altura talvez pareça desnecessário explicar o que é crowdfunding. Desde que o financiamento coletivo se popularizou no país, por volta de 2010, o brasileiro doou e aderiu a projetos de festas, arte, shows internacionais, jornais independentes e até bloco de Carnaval.
Mas, embora a música seja o assunto de maior interesse e uma das áreas que mais crescem entre as “vaquinhas” online, somente agora artistas brasileiros de renome internacional ou com anos de carreira aderiram à prática.
"Tínhamos um medo danado de não alcançar a meta”, revela Canisso, baixista do Raimundos, ao UOL. Com mais de 20 anos de estrada, a banda lançou recentemente o oitavo trabalho, “Cantigas de Roda”, o primeiro de estúdio em mais de 10 anos e o primeiro sem o auxílio e dinheiro de uma gravadora. "Hoje em dia somos nossa gravadora, e nossos fãs são os donos dela", avalia.
O Raimundos não foi a primeira banda a conseguir tal feito no "crowdfunding". Desde 2011, as bandas Autoramas e Forfun já haviam conquistado mais do que a verba necessária para lançar seus trabalhos. Mas o grupo de Brasília, um dos mais significativos do rock nacional na década de 90, jogou luz na ferramenta.
"O que está acontecendo é que rompemos a barreira do 'crowdfunding'", explica Bernardo Palmeira, sócio e diretor artístico do site Embolacha, que promove esse tipo de financiamento. "Havia resistência por parte dos músicos para pedir dinheiro. Se isso era realmente bem visto."
A indústria musical, viva aos trôpegos, também ajudou na descoberta. Bernardo já trabalhou em grandes gravadoras, como Universal e Sony, e, após criar um selo independente, o Bolacha Discos, investiu em 2011 na criação do site, com foco exclusivo na música.
"As gravadoras antigamente ofereciam um valor antecipado, e aquilo se convertia em produto. Mas tudo isso já foi por água abaixo. Os artistas viram que o 'crowndfunding' nada mais é do que compartilhar um trabalho direto com o fã, o único que nunca sai do seu lado."
O Raimundos que o diga. Com a ajuda de 1,6 mil fãs, a banda ficou surpresa ao arrecadar R$ 123 mil para a gravação do álbum, mais que o dobro do valor solicitado: R$ 55 mil. Os fãs recebem ingressos, autógrafos, encontros e nome nos agradecimentos como contrapartidas, além do mimo maior: o próprio disco físico, exclusivo dos doadores. Quem não colaborou só consegue ouvir o trabalho na versão digital.
Canisso conta que chegou a sondar gravadoras para gravar “Cantigas de Roda”, mas que, na ponta do lápis, eles descobriram que o financiamento dos fãs daria mais liberdade artística e financeira.
"O valor para produzir um disco não muda, mas as propostas que a gente recebia queriam uma mordida nos ganhos dos shows. Eles agora querem seu sangue. Fizemos uma estimativa do que eles poderiam oferecer para a gente. Divulgação? Distribuição? Vamos pagar o escritório de divulgação. É a mesma que as gravadoras estão usando. É mais vantagem você pagar tudo sozinho", afirma.
Foi Canisso que explicou, no papel de um professor de cursinho, as fórmulas básicas do "crowdfunding" no vídeo de apresentação do projeto, a grande arma para que a campanha ganhe notoriedade e participação. Agora o músico relembra a primeira fase da banda, quando não apenas tocava baixo, mas trabalhava nos bastidores para fazer o Raimundos acontecer. “Minha casa está cheia de pilhas de discos. Eu e a patroa aqui estamos distribuindo-os por correio para os colaboradores”.
“Seus pais sabem?”
Com prestígio internacional, o baiano Lucas Santtana já estava com um disco pronto quando pensou em alternativas para lançá-lo de maneira rápida e menos nociva ao próprio bolso. Para pagar mixagem, masterização, projeto gráfico e fabricação das mídias, pediu R$ 21 mil. Faltando 45 dias para a meta ser alcançada, já tem R$ 9 mil no caixa. Para tal, lançou mão de um vídeo cômico, com a participação do ator Felipe Rocha, no qual explica o projeto sem deixar de caçoar da própria condição. “Seus pais sabem que você está pedindo dinheiro?”, questiona o amigo ao cantor.
Lucas, que já participou de editais para lançar os últimos trabalhos, vê o "crowdfunding" como mais uma opção para os artistas. "A questão é que são poucos editais e todos eles têm uma curadoria. É algo bem legal, mas uma roleta russa”, revela o compositor.
Quem optar pelos pacotes mais caros do projeto -- de R$ 2 mil a 10 mil -- ganha uma discotecagem de Santtana ou um show acústico na casa do doador.
Já o cantor e compositor Daniel Belleza foi pelo mesmo caminho ao financiar seu “Canções para Crianças de Todas as Idades” em 2013. Para arrecadar R$ 10 mil, chegou a oferecer um curso de truco "avançado", uma serenata e uma canção dedicada ao fã que doasse R$ 350.
“A música já foi feita, só falta gravá-la. O que mais me surpreendeu foi a aceitação das pessoas em relação à minha campanha bem-humorada. Achei que metade das pessoas iria acabar me deletando das redes sociais”, conta Daniel ao UOL, aos risos.
No múltiplo papel de artista e divulgador de próprio trabalho, Gabriel Thomaz, vocalista e guitarrista do Autoramas, afirma que o processo pode ser revelador. “A gente se organiza e restabelece as regras antidemocráticas impostas. Estamos passando por cima de tudo", defende. “Internacional”, o primeiro DVD da carreira, é o segundo trabalho da banda a nascer de parto coletivo. O primeiro foi o disco "Música Crocante" (2012). "Sempre tiramos [dinheiro para gravar um disco] do nosso bolso, do nosso cachê. Mas tendo o recurso antes, é muito melhor. É algo que dá trabalho. Seria muito melhor só tocar, gravar e viajar, mas estamos aí realizando.”
O Catarse, um dos sites de "crowdfunding" mais populares no país, estuda lançar um canal exclusivo para projetos musicais. Cerca de 22% do total de 1.756 projetos que já passaram pela plataforma são da área. O maior arrecadador da história do site, entre todos os projetos concluídos, foi a banda carioca Forfun, em 2012, no lançamento do DVD “Ao Vivo no Circo”. Foram R$ 187 mil arrecadados. O Raimundos aparece em 4° lugar.
Em quatro meses, os projetos musicais do Catarse já chegam próximo a toda a produção de 2011. Estão incluídos aí os próximos álbuns da banda Ludov e do ex-Planet Hemp Black Alien, com o segundo volume de "Babylon By Gus" (2004).
Rodrigo Santos, do Barão Vermelho, planeja engrossar a lista com seu segundo projeto solo por "crowndfunding", após o DVD “Ao Vivo em Ipanema”. “A gente sofre para apresentar um trabalho nas cenas independentes. Acho que isso pode ser maior no futuro. É a vaquinha da época da faculdade”, explica.
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