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O fim do QG punk em SP: "Hangar 110 foi mais do que uma casa de shows"

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

22/12/2017 06h58

Por 19 anos, o Hangar 110 foi uma das principais casas de show do underground de São Paulo e se colocou como um quartel general das cenas punk, hardcore e heavy metal. Ponto de encontro de fãs e bandas no bairro do Bom Retiro, tudo começou com uma história de amor entre os donos, Marcos "Alemão" Baldin e Cilmara  Baldin. E, ainda juntos, eles decretaram para o próximo sábado (23) o fechamento de um espaço por onde passaram, segundo os próprios estimam, mais de 3.000 bandas.

O Hangar vai fechar como abriu: com o CPM 22 no palco, mas agora com uma rodada dupla de shows no sábado (o primeiro às 17h e o último às 21h, ambos com ingressos esgotados). A banda de hardcore melódico ainda era iniciante quando inaugurou a casa em 17 de outubro de 1998. Quem originalmente abriria os trabalhos naquela noite seriam os Imperpheitos, de Santos (SP), mas se atrasaram para subir a serra rumo à capital.

Hangar 1 - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Flyer do primeiro show, que teve os Imperpheitos cancelando a participação, está pendurado na parede do Hangar
Imagem: Marcelo Justo/UOL

O Hangar 110 acabou sendo um ponto de partida para toda uma cena. Com a filosofia de fomentar o underground nacional, até os donos se surpreenderam quando aqueles jovens do CPM 22 estouraram. "Foi uma ciumeira", relembra Cilmara. "O público que assistia aos shows deles aqui não queria deixar o público novo entrar". O álbum autointitulado, de 2001, deu sequência a três discos de ouro para Badauí e companhia e levantou outros nomes. 

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A lista de bandas a passar pelo palco construído no braço por Alemão --com Cilmara levando os tijolos na carriola-- vai de lendas nacionais como Garotos Podres, Gritando HC, Cólera, Olho Seco e Ratos de Porão a presenças gringas, como Marky e CJ Ramone, Jello Biafra, Stiff Little Fingers. No metal, Cannibal Corpse, Behemoth, Mayhem e muitas outras. E não só famosos, já que o projeto da casa Skema 110 dava chance para bandas desconhecidas iniciarem suas trajetórias e virarem banda de abertura para nomes já consagrados.

Nem tudo era fácil: o casal chegava a revistar os punks e guardava, devidamente identificados, canivetes, correntes e socos ingleses do público, e devolvia só ao fim do evento. Nos bastidores, acolhimento e linha-dura. Alemão conta que fazia de tudo para os músicos terem seu espaço e se sentirem artistas: "Era o momento deles". Mas também fazia seu papel para evitar excessos e saía correndo para o camarim quando sentia cheiro de maconha. "Os caras até tiravam sarro: 'O Marcão tá chegando!'".

A partir de domingo, tudo será lembrança. O casal Baldin perdeu as esperanças de um futuro tão promissor quanto foi o passado da casa. "A gente já vinha pensando na possibilidade: 'Putz, tá difícil, as coisas não estão indo bem'. Não é que os negócios não iam bem. É que a gente não vê uma perspectiva de renovação de público e de bandas. Então, chegamos a essa conclusão no meio do ano passado e, quando fizermos 18 anos, decidimos dar a última temporada para todo mundo. Pra gente, para as bandas e para o público."

Alemão diz que não vê surgirem bandas de adolescentes que possam rejuvenescer a cena. Tampouco o público tem se renovado. "Não é uma coisa do Brasil, é uma coisa mundial. O público envelheceu, as bandas envelheceram. Eles têm outras prioridades. O cara casa, tem filho, tem que trabalhar. Banda não é mais fonte de renda. Aí as bandas ficam em segundo plano. Tudo isso junta num quebra-cabeça e percebemos que não tem luz no fim do túnel".

Hangar 2 - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Esta é a visão de quem entra no palco
Imagem: Marcelo Justo/UOL

A série final de shows tem enchido a casa, com nomes como NX Zero (com dois shows no mesmo dia), Deadfish, Garotos Podres, Nitrominds e Hateen. Gente que não aparecia há cinco, dez anos, retornou para dar adeus, deixando para os donos uma sensação mista, com mais orgulho do que tristeza por encerrar esse capítulo. "Um amigo de uma banda falou que, para eles, vir aqui era como a pelada do fim de semana, um lugar de encontro, em que eles extravasavam", resume Cilmara.

Alemão adiciona: "A gente tem um feedback muito grande das pessoas que vêm assistir. Pessoas que eu nem lembro, mas que agradecem, dizem que ajudou a formar o caráter. Tem gente que até chora. E isso mostra que não criamos algo para ganhar dinheiro, para pagar as contas. A coisa teve uma dimensão maior, foi mais que só uma casa de shows."

Por que fechar?

Alemão: Não tenho dívida, sempre conseguimos sanear a empresa e trabalhar direitinho. Se eu quisesse continuar, poderia. Mas o som está mudando. A gente abriu para fazer um som alternativo, de rock. Não só punk, não só hardcore, mas rock. Partir para outra coisa, para uma MPB, seria uma agressão contra nós mesmos. Seria mais ou menos se prostituir. A gente não vai ficar rico com isso, então, não vamos depois de 20 anos mudar a proposta e fazer algo que não gostamos.

O futuro

Alemão: Estamos tentando negociar o espaço, talvez com outro segmento. E nós temos dois pubs com um sócio, em Pinheiros [zona oeste de São Paulo]. Então, temos outras coisas para fazer, não vamos virar vagabundos [risos]. E temos o Hangar como produtora, fazemos outros shows e o festival Oxigênio. O Hangar acaba como casa de show, mas não como produtora.

Uma bronca

Alemão: Uma bronca que tenho é de banda que chegava aqui e falava: 'Pô, adoro fazer show aqui'. Mas ia lá, em outro lugar, que é uma bosta... se é uma bosta, por que vai tocar lá? Em vez de fazer uma aqui e uma lá, poderiam fazer duas aqui. Isso ajudou [a fechar a casa].

Hangar 4 - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Cilmara e Alemão vão se dedicar ao Hangar como produtora e a dois pubs
Imagem: Marcelo Justo/UOL

O começo

Alemão: Nos anos 70, começo dos anos 80, eu tinha uma banda de punk rock, que mais ensaiava do que tocava. E nessa época começou aquela fase mais pesada, com gangues e tal. Então me afastei, fui estudar, trabalhar, cuidar da minha vida. Mais tarde, eu trabalhava em uma gráfica, mas vendi minha parte na sociedade e comecei a pensar em outro negócio. Eu voltei a ir à Galeria do Rock, e lá tinha a loja do Fábio [Sampaio], do Olho Seco. Lá era o QG de todo mundo. Eu voltei lá em 1997, mais ou menos, e ele falou: 'Marcão, olha o quanto tem de CD aqui. Uma prateleira só de CD brasileiro. E continua o mesmo problema da nossa época, não tem lugar para tocar'. Então acendeu uma lâmpada.

Construindo o sonho

Cilmara: Ele [Alemão] nem costuma lembrar disso, mas antes de tudo nós fomos a uma casa, o Espaço Retrô, e saindo de lá, ele disse assim: 'Vou te falar uma coisa, um dia nós vamos ter uma casa underground'. Parecia tão distante. E de repente foi dando tudo certo.

Alemão: Na época em que abrimos aqui, em 1998, tinha dança da garrafa, axé, pagode, tudo isso em alta. Aí chego para família e falo: 'Gente, estou pensando em abrir uma casa de punk'. O pessoal achou que eu estava louco. A única que acreditou foi ela.

Cilmara: Do começo ao fim.

O local

Alemão: A gente começou a procurar o local com um conceito: tinha que começar cedo, 19h, e acabar cedo, antes de o metrô [fechar] para as pessoas não ficarem na rua. Vimos aqui de cara, mas não gostei por causa das colunas [de concreto no meio da casa]. Rodamos, não achava nada, então voltamos: 'Vai ser lá mesmo, no Bom Retiro'. Aqui era um galpão em que os caras faziam decoração para shopping, tinha um monte de tranqueira, umas estruturas de ferro, fios, luzinhas de pisca-pisca. Então, a gente vinha pra cá, ficava dias montando tudo. Eu fiz o palco, ia construindo, enquanto ela trazia os tijolos no carrinho.

Hangar 5 - Reprodução/Facebook/Marcelo La Farina - Reprodução/Facebook/Marcelo La Farina
Imagem: Reprodução/Facebook/Marcelo La Farina

Matinê mudou tudo

Cilmara: No começo, algumas pessoas acharam estranho querer abrir cedo, falaram que ia ser matinê, estranhavam.

Alemão: O cara chega aqui às 19h, o show começa às 20h, ele toma uma cerveja. Até às 23h, o cara tomou cinco. Não está 'louco', vê a banda, gosta, compra um CD, uma camiseta. Isso começou a gerar [lucro] para a banda também. Uma coisa puxa a outra. Isso do horário não foi pensado por esse lado, mas ajudou muito e mudou o conceito para o público.

Primeiro show e consolidação

Alemão: O primeiro show seria Gritando HC, CPM 22 e uma banda de Santos, Imperpheitos. Mas a banda de Santos se atrasou para subir a serra, cancelou, e o CPM entrou para tocar como primeira banda. Eles ainda estavam começando. O show deu umas 180 pessoas, foi abaixo do que esperava. A gente tinha como meta [tentar até] setembro de 1999. Se não virasse até lá, ia fechar. Mas foi indo. Um show que foi um ponto de virada foi quando o Varukers tocou numa sexta e num sábado. Na sexta foi miado. Mas no sábado, meu amigo, fechou a rua. Naquela época, punk usava muito adereço, com corrente, canivete, soco inglês. Começou a vir muita gente e tinha que fazer revista em tudo. Não podia entrar com isso. O show que ia começar 22h30 foi começar 1h30. Mas foi avassalador.

Linha-dura

Alemão: Problema sempre tem, o público é de adolescentes, às vezes um cara acende um cigarro de maconha aqui dentro. Se você deixar a coisa solta, aí perde o controle, então sempre fomos bem rígidos, tanto no horário quanto com o que acontece aqui dentro. Aqui dentro [no backstage], até há um tempo atrás se fumava. Mas não se fumava maconha. Os caras até tiram sarro, porque eu saía correndo aqui [para o camarim] para falar que não podia. Mas não dá, né? Não sei por que isso ainda não foi liberado, legalizar iria diminuir muitos problemas.

Hangar 3 - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Área do camarim é coberta de adesivos e pichações
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Interditado por um mês

Alemão: A gente nunca tinha tido uma casa de show antes e, quando você abre, você acha que está certo. Quando abrimos, não tinha porta de emergência. Imagina se acontece alguma coisa. Em 2008 fomos interditados por um mês para se adequar à legislação. Mas a gente viu que eles tinham razão.

Não fechar?

Alemão: Se fosse sempre como está sendo neste encerramento, a gente não iria fechar. Mas a gente sabe que é uma despedida mesmo. Se a gente pega e fala: 'Vamos continuar', tudo ia voltar ao normal. Tem duas possibilidades de não fechar: uma é eu ganhar na Mega Sena da virada, e a outra é aparecer um patrocínio que ajude a bancar. Em 19 anos, só tivemos um patrocínio, uma marca de bateria. Depois, nunca apareceu mais nada.

Bandas e shows inesquecíveis

Alemão: Teve o Stiff Little Fingers. Eu, quando era moleque, acordava e ia dormir escutando, e eu nem sabia como eles eram, não tinha foto. De repente, conseguimos fechar, e vieram tocar aqui. Aquilo foi uma coisa. A gente saiu pra ir beber com os caras em boteco. Também os Ramones, né? Vários deles passaram por aqui, e foi a primeira banda que escutei. De repente tinha Marky Ramone aqui, Richie Ramone, CJ. Tem umas coisas que você acaba se orgulhando. Outra que veio tocar aqui e a gente não esperava, porque já era do mainstream, foram os Titãs, na época em que o Rick Bonadio fazia coisas com Strike e Glória. Quisemos mostrar os Titãs para um público novo. Depois de um mês, o cara aparece na Globo com uma camiseta do Hangar.

Lenda à capela

Alemão: Tivemos muitos momentos memoráveis. No show do Jello Biafra [em 2010], chegou na hora da última música, ele ia cantar 'Holiday in Cambodia', todo mundo estava na expectativa. O cara começa e a luz do bairro todo apaga. O que o cara fez? Continuou, o baterista marcando e a galera cantando junto. Foi uma coisa inusitada, que não vai acontecer nunca mais, com ele cantando à capela. Foi fantástico. Quem veio, viu e sabe que não vai acontecer nada assim.

Sexo, drogas e rock and roll

Alemão: Não aplica pra gente. Às vezes dá vontade de tomar uma cerveja [durante o expediente na casa], mas aí vou ficar molão. Não dá, né? E não posso aparecer com bafo de cerveja quando vem pai de adolescente trazer o filho na casa.

Se as paredes do backstage do Hangar falassem...

Alemão: Vixi, eu ia ficar muito nervoso. Eu não interfiro muito, só quando eu sinto cheiro de maconha. Eu deixo os caras curtirem o espaço, porque o cara vem aqui tocar e é o momento dele. É a noite que ele tem que subir no palco e tocar, fazer o som dele. Mas eu sei que já aconteceram coisas aqui. É o que dizem! [risos]