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Com a morte de Cauby, vai junto um estilo de cantor que já não existe mais

Último show de Cauby Peixoto

UOL Entretenimento

Rodrigo Faour

Especial para o UOL

16/05/2016 12h20

Cauby Peixoto foi o último dos moicanos. Com a sua morte, vai junto um estilo de cantor que já não existe mais, aquele de vozeirão aveludado, romântico incurável, ideal para se ouvir dançando num daqueles bailes "mela-cueca" dos anos dourados.

Foi o mais longevo de todos os nossos cantores desse naipe, com 65 anos de carreira ininterruptos, sem que o metal da voz jamais lhe faltasse, sempre gravando e fazendo grandes shows. Até o fim.

Influenciado pelos seresteiros Orlando Silva e Silvio Caldas, pelo balanço do primo Cyro Monteiro e pela escola cool de Nat King Cole, ele tinha uma versatilidade fabulosa, com direito a uma usina de glamour talhada em auditórios de rádios, boates chiques (do tempo em que o Rio e São Paulo tinham uma vida noturna com música ao vivo de alta qualidade), e pitadas hollywoodianas, já que viveu um bom tempo dos anos 1950 na "América".

Nas Rádios Nacional e Tupi, Cauby foi cantor-galã, tendo um séquito de fãs que o rasgavam para levar um pedacinho de sua roupa, desmaiavam quando lhe viam, enfim, eram aficionadas por ele. Acreditem, algumas até hoje estão solteiras por sua causa. Era uma histeria tão grande que ele foi obrigado a morar num hotel para ter um pouco de paz.

Nesse tempo, encantou a todos com as românticas "Conceição", "Tarde Fria", "Molambo", "Nono Mandamento" e "Prece de Amor", a tarantela kitsch "Canção do Rouxinol" e grandes versões, como "É Tão Sublime o Amor", "Daqui Para a Eternidade” e a que o lançou ao sucesso, "Blue Gardenia", do repertório de Nat King Cole --que ele teve a honra de conhecer pessoalmente.

Temporada nos EUA

Sua temporada americana se deu entre 1955 e 1959, entre idas e vidas, capitaneada por seu empresário, Di Veras, um marqueteiro de mão cheia.

Lá, esteve ainda com Bing Crosby, cumprimentou Marylin Monroe e Jane Mansfield, chorou ao ver um show de Lena Horne, ensinou Marlene Dietrich a cantar "Luar do Sertão" e ainda ganhou música inédita de um Burt Bacharach iniciante. Participou de um filme musical vestido de toureiro e mudou o nome para Ron Coby e Coby Dijon, pois "Peixoto" era impronunciável para os americanos, gravando rock-baladas à la Elvis Presley, seu contemporâneo.

Banho de loja

Cauby foi moldado pelo empresário Di Veras --um industrial metido a compositor que vivia buscando um cantor para entoar suas melodias. Quando descobriu o potencial do rapaz numa ida a São Paulo, onde era crooner da noite no conjunto de seu irmão, o pianista Moacyr Peixoto, enlouqueceu.

Fez misérias para transformá-lo no "maior cantor do Brasil". Deu-lhe um banho de loja, mudou seus dentes, arranjou-lhe uma gravadora, e finalmente armou todo tipo de publicidade em torno de sua figura, algo incomum no Brasil da época. Em seis meses, em 1954, Cauby já estava estourado.

Ah, Cauby era um sujeito delicado e não tinha namoradas? Não havia problema, Di Veras as inventava. Por isso mesmo, foi um artista polêmico desde os primeiros tempos.

Nos Estados Unidos, Cauby deu asas mais à sua vida pessoal do que à carreira. Di Veras acabou convencendo-o a voltar ao Brasil. Aqui então fez novos sucessos a partir de 1960, como "Ninguém é de Ninguém" e "Ave Maria dos Namorados".

Passou a gravar também em outros idiomas por aqui e a arriscar outros gêneros mais modernos, como sambalanço, bossa nova e canções da MPB da fase dos festivais. Ainda fez um tour por Espanha e Portugal com grande sucesso em 1963, e na volta abriu sua própria boate com os irmãos músicos, a Drink, no Leme.

Renascimento

Durante a década de 1970, foi o rei da noite, cantou em pequenas boates pelo país e estava um pouco apagado da mídia quando em 1980 o diretor da Som Livre, João Araújo, decidiu dar um gás em sua carreira. 

Nascia o álbum "Cauby! Cauby!", em que deu uma geral no repertório, com autores mais jovens ou sofisticados. A faixa-título era um autorretrato deslumbrante do cantor pintado por Caetano Veloso. "Loucura", de Joanna e Sarah Benchimol, estourou na novela "Baila Comigo" e "Bastidores", de Chico Buarque, virou seu emblema pela vida afora: "Cantei, cantei, nem sei como eu cantava assim..."

A partir de então, a imprensa nunca mais se esqueceu do cantor. Seus discos e shows eram sempre comentados.

Influenciado pelo pianista americano Liberace, passou a ousar cada vez mais no figurino, com ternos extravagantes, e vendo shows de Ney Matogrosso e Maria Bethânia, sentiu que era preciso se renovar também no palco. O resultado foi avassalador.

Cauby passou a gravar um repertório melhor e ser um showman de primeira categoria, capaz de romper fronteiras entre o chamado brega e o chique.

Biografia

Em 2001, lancei sua biografia, "Bastidores: 50 Anos da Voz e do Mito" (Ed. Record), quando ele completou 70 anos. Tive a honra de conhecer de perto um homem íntegro, divertido, bom de papo e acima de tudo um gentleman. Ficamos amigos.

Ele me contou muito do que viveu em sua carreira, dos seus amores (nunca teve qualquer problema em relação à própria sexualidade, achava que toda maneira de amar valia a pena), das viagens, me ensinou truques de marketing e sobretudo me fez olhar para o lado bonito da arte.

Nossa maior afinidade era gostar de grandes vozes. E eu sempre levava discos ou vídeos de cantores célebres para curtirmos juntos. Ele adorava. Apesar de vaidosíssimo, sabia reconhecer quem cantava bem.

Até sua morte, tive a honra de produzir alguns shows em que ele tomou parte e de extasiar-me com sua impressionante musicalidade. Cauby era grande, dentro e fora do palco. E vai fazer falta, muita falta. Por outro lado, é o tipo de artista que jamais morrerá. Se fez eterno.

* Rodrigo Faour é crítico musical, jornalista, produtor musical e historiador de música popular brasileira. É o autor da biografia de Cauby Peixoto ("Bastidores - 50 Anos da Voz e do Mito")