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Ostentação, tradição e clandestinidade compõem painel da Festa de Barretos

Jotabê Medeiros

Do UOL, em Barretos

24/08/2015 17h07

O batismo de um ex-quase-peão na apoteótica Festa do Peão de Barretos é um choque de percepções. Há pelo menos uma dúzia de festas dentro da festa. A primeira é a festa do sertanejo ostentação, que culmina com os shows e os camarotes VIP regados a chope e tábuas de frios e queijos. Para se ter acesso completo a ela, precisa ter pelo menos umas três pulseirinhas ultra-cobiçadas. Não basta ter dinheiro, mas ter amizades sólidas. Um aperto de mão vale muito. As áreas VIP de Barretos podem ser capazes de barrar notáveis das ciências e das letras e de redimir celebridades fora de evidência --como a sumida apresentadora Amanda Françoso-- além de massagear egos de operários de TV, atarefados repórteres de programas humorísticos.

A segunda festa é a que ainda está ancorada na tradição: os ranchos com comida fumegante nos fogões a lenha, a queima do alho, a procissão com a santa que veio de longe, as comitivas que cruzam a estrada e vão se enfiando com suas charretes vintage pelas ruas sem nome, endereços todos numerados da cidade. Na Matinha, um pequeno bosque ao lado do gigantesco estádio de Niemeyer (em que os shows são óperas sertanejas com painéis de LED gigantescos), fica um pequeno palco modesto no qual os violeiros chegam carregando o próprio violão. Sobrevive ali, com amplificação deficiente e cantores que puxam os erres, a genuína música caipira que contornava o bravo coração de Inezita Barroso.

E tem a "Off Festa", que se desenrola nos bares e churrascos improvisados pelas calçadas da cidade, culminando com um flash mob inacreditável na Avenida 43, no qual os peões sem camisa e com canecas de cerveja cantam repetidas vezes, a plenos pulmões, "Estrada da Vida", sob a marquise de um posto, enquanto as cowgirls fazem selfies, dançam e são cortejadas de um jeito meio rudimentar --aos berros, no laço, na chincha. Como em Salvador, do Farol da Barra ao Jardim de Alá, a micareta sertaneja se espalha e nunca tem fim em Barretos. Nas imediações do parque, os campings têm uma dinâmica própria, um moto contínuo de música alta e rios de cerveja --o Camping dos Solteiros foi até apelidado de Las Vegas, por conta da tríade sexo, farra e jogo.

A ordem em Barretos

Há uma curiosa ordem invisível na Festa do Peão. Não tem quase camelôs em volta do gigantesco parque, e os que estão ali parece terem sido autorizados por algum big boss. Um coco gelado custa R$ 10, o que parece impulsionar ainda mais em direção ao cervejódromo. O trânsito não tem orientação, mas tudo flui e conflui. E as barreiras policiais da Lei Seca são generosas: se posicionam sempre antes do início da festa, nunca depois --se fosse depois, não haveria cela para tantos detidos, porque o consumo de álcool é um poço sem fundo. Milhares se posicionam nas redes sociais contra a brutalidade praticada contra os touros e os cavalos nos rodeios, mas nenhum ambientalista tem coragem de fazer um protesto ali na frente. Parece uma espécie de Texas da tolerância política.

Para os peões, Barretos é um lance de vida ou morte. É uma porta de ascensão social tão importante quanto os clubes de futebol para os jogadores. Pode-se ganhar muito dinheiro, mas só até os 40 anos, o limite da flexibilidade do montador. É uma atividade análoga ao futebol: tem ali o seu Neymar, que ganha caminhões de dinheiro, e tem o peão que dorme no estábulo para tentar a sorte na roda viva da arena.

No interior do Parque do Peão, um bombardeio de merchan e uma inacreditável oferta de botas caras e chapéus caros e arreios ainda mais caros. Não é de um salário mínimo que se constrói a imagem perfeita do Homem de Marlboro de Barretos. O Parque do Peão é primo-irmão da Cidade do Rock, com seus refúgios temáticos --o mais impressionante deles o Rancho do Peãozinho, um playground para as crianças com pôneis, avestruz, ovelhas, patos, marrecos e um cavalo Faísca que funga e dança sozinho e parece saído de um velho filme do Zorro.

Na estrada de volta, no cenário straight (quase 100 km de um retão inicial em direção à Capital), as picapes paradas nos pedágios ilustram a força econômica e a autonomia sonora --quase todo mundo tem seu sound system particular, e ele ainda está em alto volume na volta para casa, seja ela em Fortaleza ou Jundiaí.